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Diário de fuga

Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

Diário de fuga

Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

Mundos

31.10.11 | Alice Barcellos

Atingimos sete mil milhões de habitantes no planeta. Uma frase fácil de dizer. É um número redondo e muito, muito, muito grande. De uns tempos pra cá, a nossa sociedade apanhou o gosto de transformar humanos em números. E, é claro, esta data não poderia passar em branco.

Concordo que a efeméride sirva de pretexto para falarmos das desigualdades no mundo, das alterações climáticas, do combate a doenças e de todos os grandes problemas da humanidade na terra, que são, na sua maioria, provocados pela própria humanidade.

Mas amanhã a maior parte das pessoas vai esquecer-se de que somos sete mil milhões, e vai voltar a preocupar-se com as dezenas de habitantes do seu mundo. Sim, porque dentro destes milhares de milhões, cada ser humano constrói o seu próprio planeta, com as suas prioridades e preocupações.

Por isso mesmo é difícil pensar em tanta gente, tantas histórias, tantos problemas, tantos mundos. É mais fácil começar aqui, perto de nós, junto de quem conhecemos. Quem sabe se este destaque que foi dado aos sete mil milhões de pessoas no planeta, sirva para que cada um tente mudar o seu mundo.

Podíamos consumir menos, poluir menos, sermos mais simpáticos nos transportes públicos, reclamar menos da vida, ser menos invejosos e mesquinhos no trabalho, mais ativos como cidadãos e mais empreendedores.

Podíamos valorizar o nosso planeta, já tão sobrecarregado e explorado por nós próprios. Descobrir a beleza e a singularidade de cada por do sol e de cada mudança de estação.

Podíamos surpreender-nos mais com a unicidade de cada povo, cada raça, de cada ser humano. Respeitar as diferenças entre culturas, não discriminar pelo sexo ou cor. Não julgar antes de conhecer.

Se cada um tentasse mudar o seu mundo, o planeta dos sete mil milhões seria com certeza um lugar melhor.

Último mergulho

25.10.11 | Alice Barcellos

Eles resistiram

Ao sol abrasador do meio dia

Aos choros e gritos das crianças

Aos vendedores ambulantes

Às bolas perdidas

Eles olharam de frente o sol

Não recearam os seus raios

Não tiveram medo das ondas

Nem das rochas

Mergulharam com todo

O seu fôlego

Quase que tocavam os peixes

Nadaram até ao limite

Como se o horizonte não fosse infinito

Eles souberam esperar

Ler algumas páginas

Fumar um cigarro

Ou simplesmente

Sentar à beira mar

Eles resistiram ao dia

Esperaram pelo crepúsculo

Aquela hora mágica

Em que as sombras aumentam

As cores desvanecem, esbatem-se

Em que o areal se esvazia

Aos poucos

O silêncio chega

Interrompido pelo desenrolar das ondas

As primeiras estrelas ocupam os seus lugares

O horizonte fica tingido por uma linha laranja

Que vai escurecendo até ficar quase imperceptível

Eles resistiram

Esperaram para dar o último mergulho

Numa comunhão total

Naquela praia que afinal

Era só deles

Encontro no aeroporto

17.10.11 | Alice Barcellos

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O voo havia atrasado mais de três horas. O seu laptop já estava sem bateria e tinha esquecido o kindle em casa. O iphone não apanhava wireless. Já tinha corrido todas as lojas e feito um lanche. Não havia mais nada para fazer, a não ser esperar.

Andou pelos corredores perto do seu portão de embarque à procura de um local para sentar com poucas pessoas à sua volta, mas era difícil pois com vários voos atrasados, o aeroporto estava cheio.

Desde que começara a viajar muito a trabalho, o encanto inicial de esperar para voar havia desaparecido. Começou a odiar passar horas no aeroporto, nas filas para o check-in, para o embarque, para comer e para ir ao WC. Prometia a si mesma que se fosse rica um dia, alugaria um avião privado.

Acabou por encontrar um banco de três lugares vazios, não viu nenhuma criança a chorar por perto e ninguém a ver vídeos ou a ouvir música sem phones. Decidiu sentar-se.

Os ponteiros do relógio demoravam a rodar e ainda faltavam duas horas e meia para o voo. Começou a ser embalada pela música ambiente e pelo vai e vem de pessoas e vozes. Quando começou a dormitar, foi interrompida.

Ele era bonito, de uma beleza discreta. Queria pedir uma informação sobre um voo, que por sinal era o dela. A coincidência levou com que se sentasse ao seu lado e começasse a perguntar informações sobre a cidade.

Se fosse outra pessoa, ela provavelmente teria despachado com uma resposta torta mas, quer fossem os seus olhos castanhos com pestanas longas, quer fosse a falta do que fazer, ela acabou por entrar na conversa.

Quando chegou o momento de entregarem o cartão de embarque, ela já tinha despejado metade da sua em vida em cima dele. Contou o sucesso que tinha alcançado em apenas dois anos naquela empresa, a pós-graduação que estava a pensar em fazer, o MBA que tinha cursado no ano passado, o seu interesse pelas novas tecnologias e o seu ódio atual por aeroportos.

Ele ouviu com aquele ar de bom ouvinte, de pessoa que gosta de escutar, fazendo trejeitos com a cabeça e sorrindo de forma contida. Por fim, antes de se separarem dentro do avião, ela perguntou o que ele ia fazer naquela cidade. Ele respondeu que também estava a trabalho.

Durante a viagem, ficou a pensar nele, em como tinha tido sorte em encontrá-lo. Sempre pensou que as “amizades” de aeroportos só duravam o tempo da viagem, mas desta vez tinha ficado encantada.

Quando desembarcaram, lançou o convite. Disse que estaria na cidade dois dias e que poderiam encontrar-se para um café ou um jantar. Ela conhecia um bar que era um charme, com a decoração inspirada em clássicos do cinema americano.  

Ele disse que não, que provavelmente não teria tempo pois precisava aproveitar estes dias ao máximo para trabalhar. Ela corou e o facto de saber que estava a corar ainda a deixou com as bochechas mais vermelhas.

Numa última tentativa, ela sugeriu que trocassem números de telemóvel. Ele não tinha telemóvel. Despediu-se então e virou costas, caminhando rápido para o táxi. Nunca se sentira tão humilhada. Então, como é possível não ter telemóvel? Podia ter inventado uma resposta melhor para me despachar, pensou.

Durante a sua estadia na cidade, as reuniões correram mal. Ela estava ácida, de mau humor. Só pensava numa forma de encontrá-lo outra vez. Seria difícil através da internet pois só sabia o seu primeiro nome. Quem sabe teria a sorte de apanhar o mesmo voo do que ele de regresso.

Antes de ir dormir, tentou lembrar-se de algo nele que o pudesse identificar, uma etiqueta na bagagem por exemplo. Mas não havia nada, a não ser aquela beleza discreta de olhos profundos, sorriso contido, expressão de bom ouvinte e um bloco de notas nas mãos em que rabiscava desenhos incompreensíveis de vez em quando.

O bloco! Ele deve ser jornalista, apostou ela. Mas um jornalista sem telemóvel? É claro que ele tem telemóvel, lembrou, aquela resposta foi para me cortar, concluiu.

Os dois dias passaram e ela regressou. Não o encontrou no aeroporto. Chegou ao trabalho e na semana seguinte foi despromovida. Aquelas reuniões eram decisivas e o seu mau desempenho tinha desiludido muito os seus superiores.

Por ter descido de posto no trabalho, deixou de fazer viagens e voltou a trabalhar na sua secretária e no seu computador. Pensava muitas vezes naquele encontro nefasto no aeroporto. Por culpa daquele "João sem telemóvel", ela tinha voltado ao seu trabalho sedentário e sem graça.

Num dia chuvoso de outono, quando ia a caminho do metro, parou frente à montra de uma livraria. O título do livro chamou-lhe atenção: “Uma vida por trás de gadgets – crónicas do mundo atual”. O escritor, João Ribeiro. Ficou sem reação, não comprou o livro, não queria acreditar.

Quando chegou em casa, “googlou” o título e o autor do livro, encontrando uma entrevista recente com o escritor. Era ele, a foto comprovava. Na entrevista ele explicava que o livro contava estórias de encontros e desencontros que tinham como personagens principais homens e mulheres adeptos desta mão cheia de aparelhos indispensáveis na vida de hoje.

Continuou a pesquisar, encontrou-o nas redes sociais, descobriu o seu e-mail e o telefone da sua editora. A próxima apresentação do livro seria naquela quinta-feira num café perto de sua casa. Decidiu que não ia perder a oportunidade de acertar contas com ele. Afinal, ela não se sentia à vontade de ser tema de um livro.

Depois da apresentação e conversa sobre o assunto, sempre muito polémico e maniqueísta, ela esperou a sala ficar mais vazia e dirigiu-se a ele. A luz branda do local fazia com que os seus olhos ficassem ainda mais misteriosos. Ele olhou para ela e sorriu.

Lembra-se de mim, disse. Não, já tivemos a oportunidade de nos conhecermos, perguntou ele cordialmente. Não se lembra de um encontro no aeroporto, quando o nosso voo atrasou e acabamos por conversar um pouco, respondeu ela em tom sério.

O escritor explicou-lhe que no último ano tinha a passado a vida em viagens, em aeroportos, estações de comboios e autocarros, à procura de estórias para o seu mais recente livro. Por isso mesmo, era natural que não se lembrasse dela.

Ela tentou reavivar-lhe a memória falando um pouco sobre os temas que tinham conversado, que no fim ela tinha lhe pedido o número de telemóvel e que, para surpresa sua, ele não tinha – ou não queria dar.

Ah, então foste tu que me convidaste para ir a um bar com decoração de clássicos do cinema, perguntou. Sim, ela respondeu um pouco ruborizada. A explicação seguiu-se sem complicações. Na altura, ele não tinha usava telemóvel pois queria afastar-se ao máximo da matéria-prima das suas estórias. Já reparou a quantidade de pessoas que estão completamente viciadas nestes aparelhos hoje em dia?

Ela fez que sim com a cabeça, acabando por reparar que não estava incluída neste grupo, afinal o mais importante para ele tinha sido o convite para sair. Naquela época não tinha mesmo telemóvel, mas agora tenho, afirmou. Trocaram números e conversaram pela noite dentro naquela mesa de café com luz branda. Ela levemente corada e ele com aquele ar de quem sabe ouvir.

Casa dos avós

12.10.11 | Alice Barcellos
Este ano não tirámos nenhuma fotografia juntos. Todos os anos, é sempre a mesma coisa. Antes das despedidas fazemos algumas fotos, quase sempre nos mesmos locais da casa, no jardim com a velha caneleira como pano de fundo ou no banco da varanda que dá para a piscina.

Haverá sempre uma casa dos avós. Se ela não existiu de facto, deve existir no imaginário de cada um. No meu existe este local onde encontro sempre uma fotografia de família esquecida, de quando eu era criança, de quando os meus pais eram casados, de quando os meus avós eram novos.

A casa dos avós é aquele lugar dos almoços em família, sempre a mesma hora. Da comida acabadinha de fazer e sempre muito gostosa. Ir para a casa dos avós significa esquecer as dietas.

Desde que deixei de viver perto dos meus avós maternos, há sempre uma altura do ano para estar com eles, na casa deles. O que significa viver no tempo deles. Ler o jornal (quase da primeira à última página como faz o meu avô), ver a novela, acordar e dormir cedo, descobrir novos romances na estante cheia de livros e conversar.

Estante

 

Conversar muito. Tentar explicar o meu mundo para eles nem sempre é fácil. Eu trabalho num site, produzo notícias que podem ser vistas na web. Para nós isso é trivial, mas para pessoas com mais de 80 anos é uma realidade pouco palpável.

Ainda assim, nós sempre nos entendemos e, mesmo que fique alguma coisa por dizer, haverá um próximo encontro, talvez no Natal ou só no próximo ano.

Desta vez, foi diferente. Tomei consciência de que pode não haver um próximo encontro. É difícil encarar que vamos perder um dia aqueles que mais amamos. É difícil perguntar a alguém se considera que a morte está a chegar. É impossível prever.

Podemos não ter tirado nenhuma fotografia mas não ficou nada por dizer. Por mais complicado que seja entender algumas diferenças entre gerações, o amor é sempre compreendido e não precisa de muitas palavras para ser explicado.

Casa

Mais tempo

11.10.11 | Alice Barcellos

Entre 2006 e 2010, alimentei sem grandes preocupações de atualização constante, o blogue escrevo-logo-existo. Um espaço para algumas reflexões pessoais, poemas, textos, livros, fotos, enfim, para pedaços do meu mundo mais íntimo.

Quando comecei a trabalhar como jornalista, há quase três anos, ficou mais difícil alimentar o blogue, além de terem surgido outras distrações na web, como o Twitter ou o Facebook, que me chamaram atenção e fizeram com que me desviasse do blogue.

Agora, gostaria de voltar a ter um espaço mais pessoal onde pudesse partilhar impressões com quem quiser passar por aqui, com mais tempo e longe do frenesim das redes sociais, que continuo a adorar e onde continuarei a estar. Vamos ver o sai daqui.