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Diário de fuga

Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

Diário de fuga

Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

Memórias do dia 19

20.10.12 | Alice Barcellos

Naquela noite, saíram sem destino. Aninharam-se num bar escuro e beberam um copo de vinho. Por entre conversas banais, sobre roupas, unhas e casais, descobriram que a amizade também é isso. Também é dedicar tempo, mesmo depois de um dia de trabalho, mesmo com poucas horas de sono, mesmo num dia de aniversário. Já quase de madrugada, foram embora. Cá fora, a cidade estava vazia e sombria. O nevoeiro escondia os maus intencionados. E pensaram que, naquele instante, todo o mau do mundo lhes podia acontecer. Mas o bater da porta do carro fez evaporar estas ideias soturnas. No dia seguinte, morreu um grande escritor, que adorava gatos e adorava o Porto. O nevoeiro passou, mas a cidade ficou mais triste e mais cinzenta.

Ela ficou um ano mais velha e, ao contrário do habitual, ficou melancólica e nostálgica. A pensar no que é ser jornalista, a pensar que o país navega num mar de sargaço sem fim à vista. A pensar naqueles que pensam nela do outro lado do atlântico. A pensar que às vezes queria ter um barco e navegar sem destino para pensamentos melhores.

 

A um Jovem Poeta

Procura a rosa.
Onde ela estiver
estás tu fora
de ti. Procura-a em prosa, pode ser

que em prosa ela floresça
ainda, sob tanta
metáfora; pode ser, e que quando
nela te vires te reconheças

como diante de uma infância
inicial não embaciada
de nenhuma palavra
e nenhuma lembrança.

Talvez possas então
escrever sem porquê,
evidência de novo da Razão
e passagem para o que não se vê.

Manuel António Pina, in "Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança"

Ao contrário

06.10.12 | Alice Barcellos

A bandeira nacional hasteada ao contrário tornou-se o símbolo do último feriado 5 de outubro que vamos ter pelo menos enquanto a coligação PSD-CDS continuar no governo, o que pelo andar da carruagem pode ser por menos tempo do que o esperado. Das comemorações da data, tão importante para um país que ainda guarda bem frescas as memórias da ditadura, não vale a pena falar muito. Até porque não passaram de um assinalar oficial por políticos cada vez mais acossados pelo povo, mais distantes e rodeados de seguranças.

A bandeira ao contrário foi o culminar de uma semana em que muitos portugueses sentiram que vão ter de virar as suas vidas de pernas para o ar se quiserem sobreviver ao enorme aumento de impostos anunciado por Gaspar. Foi um sinal de desrespeito na semana em que António Borges chamou os empresários de ignorantes - mais uma demonstração da falta de coordenação e comunicação dentro deste executivo cada vez mais patético.

A bandeira hasteada ao contrário pode até não ter passado de um descuido, um "desagradável incidente", como classificou António Costa. Mas depois de uma semana como esta, recheada de más notícias, depois de termos sido banidos de celebrar o que supostamente é de todos, depois de já não acreditarmos mais em quase nada nem ninguém, não queríamos isso. Era escusado, já nos basta ter de levar todos os dias com um país cada vez mais ao contrário.

Fotografia: Miguel A. Lopes/Agência Lusa