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Diário de fuga

Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

Diário de fuga

Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

Aprender a apreciar os dias nublados

08.09.15 | Alice Barcellos

Ah, os dias nublados! A luz difusa que não colore as coisas com a mesma intensidade dos dias de sol. O céu carregado, a ameaçar chuva. O vento que sopra mais frio. Há um lado belo nos dias nublados, há um certo mistério que chama por nós entre as nuvens. Conjugações naturais que encantam muitas pessoas... mas não a mim.

Consigo entender quem goste mais dos dias sem sol, mas é muito difícil conseguir sentir este sentimento de satisfação perante o tempo cinzento. Só se for para estar em casa, enrolado num cobertor, a ver filmes, dizem-me alguns. Ok, até posso abrir esta exceção, mas, ainda assim, prefiro fazer a mesma atividade num dia de sol. E então, quando num mês cheio, temos um fim de semana prolongado e resolvemos viajar para conhecer uma praia é imperativo estar sol. Mas a meteorologia já previa chuva...

O destino era as Ilhas Cíes, em Vigo. Um local já há muito cobiçado dentro dos planos de viagens, mas que ia ficando para trás, verão após verão. Este ano teve que ser. Mesmo com a meteorologia contra nós, pegamos no carro e seguimos para Vigo. No dia de partir para a ilha, o céu ainda amanheceu com alguns raios de sol, mas mal chegamos no cais de embarque, a chuva afirmou-se como um cenário previsível para as próximas horas.

Seguimos viagem, entre um mar que se mostrava em tons de cinzento, prata e preto, entre montes onde a neblina misturava-se com as nuvens carregadas. O vento estava frio e os casacos salvaram a viagem. Quando desembarcamos, conseguimos imaginar a beleza daquele local num dia soalheiro. De como a água ganharia tons de verde claro e azul. Mas este não era o dia e, por isso, caminhamos entre a areia e o mar pálido na esperança de uma aberta no céu. Não aconteceu, pelo contrário, foi ficando cada vez mais fechado.

Resolvemos regressar mais cedo (foi o melhor que fizemos porque a chuva veio mesmo e com força) e na viagem de regresso, num catamarã quase vazio, eis que avistamos ao longe barbatanas e caudas aos saltos naquele mar cinzento. Fomos brindados com a presença de um grupo de golfinhos. Tal como há quem fique encantado com dias nublados, eu fico encantada com estes animais marinhos. Há um mistério que me chama entre o seu nado ágil e a sua inteligência simpática.

Assim, por acaso, ganhamos o dia. Ter aqueles minutos fugazes com golfinhos a nadar à volta do barco foi o que bastou para criar uma memória inesquecível. Fico a pensar para mim que se estivesse um dia de sol espetacular, não teria visto os golfinhos. Esta memória vai, de certeza, ajudar-me a olhar com outros olhos para os dias nublados.

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Os novos muros da Europa

01.09.15 | Alice Barcellos

A História ensina-nos sempre lições e mostra-nos como o tempo é algo tão relativo. No ano passado, assinalaram-se 25 anos da queda do Muro de Berlim. Fizeram-se reportagens, entrevistas sentidas, reconstituições da data; líderes políticos passaram mensagens de paz e solidariedade. Lembrar para que nunca mais volte a acontecer.

A verdade é que, nem um ano volvido da celebração desta data, a Europa está mais dividida do que nunca, e o pior é que alguns destes muros não são físicos, são barreiras invisíveis construídas por ideias e políticas – talvez as mais difíceis de derrubar.

O que são 25 anos na história recente da Europa e do Mundo? Quase nada ou muito tempo, dependendo da perspectiva que se tenha e da análise que se faça. É muito, se pensarmos em tudo o que mudou ao nível político, social e económico durante este um quarto de século. É pouco, quando constatamos que erros do passado continuam a repetir-se aqui tão perto. É tão pouco quando ainda tantos de nós têm vivas as memórias de uma Europa dividida.

Abafada pelas notícias da crise na Grécia, a Hungria foi anunciando ao mundo o sucesso da construção de um muro na fronteira com a Sérvia. O governo de Budapeste quer travar a entrada de imigrantes. Só este ano já foram mais de 78 mil pessoas a tentar entrar na Hungria pela fronteira com a Sérvia. Destas, poucas realmente conseguiram. O Governo só concedeu asilo a 240 pessoas durante este ano e tem recebido críticas por causa do repatriamento sistemático dos imigrantes ilegais.

Imigrantes ou migrantes, tanto faz, na sua maioria estão em fuga dos seus países de origem destroçados pela guerra – Síria e Afeganistão. Recorrem a esta porta de entrada na Europa para depois tentarem seguir viagem para outros países, como Alemanha ou Áustria. Vêm à procura de asilo político e de um novo começo. Aspirações que vão, a partir de agora, ter de “escalar” um muro de 175 quilómetros de comprimento e quatro metros de altura, que custou 21 milhões de euros.

A Hungria, que entrou para a União Europeia em 2004, tem sido criticada por outros parceiros, mas nada que tenha demovido o governo de Victor Órban de desistir da ideia de um muro como forma de combater o enorme fluxo migratório que está a atingir a Europa.

Por ironia do destino (ou não), no mesmo período em que o governo húngaro se congratulou ao mundo pela sua solução para travar a imigração, a UE erguia também um muro à volta da Grécia e das soluções apresentadas por Tsipras e Varoufakis, rodeado de números, memorandos e exigências. Nas ruas, o povo grego batia com a cara nas portas fechadas dos bancos. Mais um tijolo no muro invisível que vai dividindo a Europa.

Apesar da divisão de ideias e mentalidades, a Europa continua a ser o local de sonho e segurança para muita gente, principalmente para quem está numa situação miserável, a fugir de guerras e conflitos. Para quem já não tem mais nada a perder a não ser a própria vida. E qual tem sido a resposta da Europa a estas pessoas? Muros.

Antes da Hungria, já outro Estado-membro da UE tinha optado por esta solução. A Bulgária começou a construir, no ano passado, um muro de 32 quilómetros na sua fronteira com a Turquia e tem planos de alargá-lo por mais 82 quilómetros nos próximos tempos. A guerra civil na Síria, que assola o país desde 2011, já causou mais de 4 milhões de refugiados. Metade destes está na Turquia, que faz fronteira com a Síria e que se tornou o país com mais refugiados do mundo.

Mais recente é o muro em que se transformou Calais. Se antes a cidade portuária era um ponto de ligação entre França e Inglaterra, e continua a ser para quem tem um passaporte, agora é um limbo para milhares de imigrantes que tentam a sua sorte numa fronteira cada vez mais vigiada.

Em julho, o Reino Unido anunciou o financiamento de 9,9 milhões de euros para a construção de uma nova vedação em Coquelles, além de assegurar o reforço da segurança na entrada para o Canal da Mancha. O discurso anti-imigração de David Cameron e companhia conseguiu desfigurar a realidade que se vive em Calais, fazendo daquela fronteira um “campo de batalha” contra a imigração ilegal, que conseguiu roubar a atenção dos media.

Mas contra factos não há argumentos: este ano chegaram a Calais entre a 2 a 5 mil pessoas, contra as mais de 300 mil que chegaram a Itália e Grécia. Entre os países da UE mais procurados por imigrantes, Inglaterra é o que menos concede asilo: em 2014, o país recebeu quase 26 mil pedidos de asilo e concedeu 10.050. A Alemanha concedeu 97.275 e a França 68.500.

Erguem-se novos muros em Calais, vedações são reforçadas, há mais arame farpado e polícias, mas o Mediterrâneo continua a ser a principal rota para aqueles que procuram entrar na Europa. Rota para milhares, cemitério para outros tantos, o mar que, outrora, ligou países e culturas é, hoje, cenário de tragédias constantes.

Foi a partir dos botes sobrelotados de olhares perdidos e desesperados que começamos a ouvir os termos “migrantes” e “ilegais”. Mais um “mito” criado à volta de quem aqui chega que é, sobretudo, refugiado (62% dos que chegaram à Europa pelo Mediterrâneo fogem das guerras na Síria, no Afeganistão e Sudão). E, acima de tudo, são pessoas. São vidas arrebentadas por guerras e outros tantos horrores que vão sofrendo desde que resolvem fugir da morte quase certa nos seus países.

É este facto tão simples que tem passado ao lado, como um barquinho de papel numa piscina, dos nossos líderes políticos. É inconcebível virar as costas e fechar as portas a estas pessoas. Vai ser fácil acolhê-las e lidar com a maior crise de refugiados desde a II Guerra Mundial? Não. Mas continuar a erguer muros e a fechar os olhos não pode ser a única e vergonhosa resposta que temos para dar.

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 Cartoon excelente do André Carrilho

 

 

 

*Crónica publicada originalmente a 25 de agosto no SAPO24