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Diário de fuga

Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

Diário de fuga

Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

Estamos a viver acima das nossas possibilidades. E não, este texto não é sobre política

30.11.15 | Alice Barcellos

Falamos, antes, da vida do Homem na Terra. Pode parecer uma frase cliché e generalista, mas a verdade é que a humanidade já começou a pagar a fatura por estar a viver de uma forma pouco (ou nada) sustentável no planeta. Estaremos preparados para o que aí vem?

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É oficial: estamos a viver acima das nossas possibilidades. A 13 de agosto de 2015 a humanidade consumiu todos os recursos naturais que o planeta é capaz de renovar num ano, segundo a organização não-governamental Global Footprint Network (GFN).

É o que se resolveu chamar “o dia de sobrecarga da Terra”, que em 1970 foi assinalado a 23 de dezembro e, desde então, acontece cada vez mais cedo. Em menos de oito meses, consumimos todos os recursos naturais que o nosso planeta produz durante 12 meses.

Para quem considera que recursos naturais é um conceito pouco palpável, trocamos por miúdos: é tudo aquilo que ajuda a manter a vida na Terra, desde a água, o vento, passando pelo solo, até chegar ao petróleo e aos minérios. Renováveis ou não-renováveis, o homem está a consumir de forma desenfreada estes recursos e, enquanto o faz, vai cavando a sua própria sepultura.

Pode parecer uma frase dramática, mas já está a acontecer. Um exemplo recente: a tragédia humana e ambiental provocada pelo rompimento de duas barragens de mineração em Minas Gerais, no Brasil.

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A pegada (pouco) ecológica que o homem tem deixado no planeta é a causa de muitas mortes por todo o mundo. De acordo com um estudo da Organização Mundial de Saúde (OMS), a poluição do ar provoca cerca de oito milhões de mortes todos os anos. A OMS refere ainda que esta é a maior ameaça ambiental para a saúde. Mas existem outras ameaças, fruto das alterações climáticas, que se tornam mais frequentes ano após ano. Vários estudos têm constatado que cheias, secas, tempestades e instabilidade do tempo são influenciadas pelas alterações climáticas e tendem a agravar-se, se nada for feito.

O aumento da temperatura no planeta – as previsões apontam entre 1 a 6 graus até 2100 – pode também ter consequências desastrosas. Desde já, pela subida do nível do mar que, de acordo com a NASA, vai ter impactos profundos em todo o mundo até o fim deste século. Nos próximos 100 ou 200 anos é quase certo que o nível do mar suba, pelo menos, um metro, devido ao derretimento cada vez mais rápido das camadas de gelo na Gronelândia e na Antártica e ao aumento da temperatura dos oceanos. Zonas costeiras e ilhas vão desparecer, bem como grandes cidades como Tóquio e Singapura.

Através da medição da altura do oceano a partir do espaço, a NASA concluiu que desde 1992 os oceanos do mundo subiram uma média de oito centímetros, havendo locais que registaram um aumento de 20 centímetros devido à variação natural.

Em vários pontos do globo fazem-se crónicas de mortes anunciadas. Como é o caso de Kivalina, uma ilha do Alasca que vai desaparecer, engolida pelas águas, em 2025. Pequenos países também já estão a lidar com o seu desaparecimento, como é o caso de Tuvalu, Vanuatu ou Kiribati – países insulares situados no oceano Pacífico. Também o paraíso na terra que é a República das Maldivas pode se transformar em mais uma Atlântida perdida no oceano até ao fim deste século.

Enquanto em alguns países e territórios já se contam os dias para o fim, em outros tenta-se combater um futuro que não promete ser risonho. A Noruega é um dos países que mais tem investido em procurar respostas às alterações climáticas, através de estratégias para lidar com a subida do nível do mar e os eventos meteorológicos extremos, de forma a atenuar as mudanças do clima na agricultura e noutros setores. Em Portugal também já existe uma estratégia nacional de adaptação às alterações climáticas, além do trabalho científico e social que vai sendo desenvolvido por várias organizações e universidades.

Mas a nível global qual tem sido a resposta? Muitas palavras e pouca ação é o que temos recebido da comunidade internacional desde que o tema das alterações climáticas entrou para a agenda mundial. Cimeiras após cimeiras, relatórios após relatórios, voltamos a ser confrontados com previsões cada vez piores, mas a verdade é que ainda não existe uma estratégia global. Aguarda-se um novo acordo em Paris, que pode ser decisivo para conter o aquecimento global. Resta saber se, num mundo cada vez mais desigual e conflituoso, estarão os países dispostos a abdicar dos seus vários interesses em prol do bem da humanidade?

Basta somar tudo aquilo que temos visto e que nos tem sido dito para traçar um cenário possível do nosso planeta. Vai ser menos verde e azul, mais pobre em recursos e espécies, o clima vai ser mais instável e vamos viver a mercê de eventos meteorológicos extremos. Os métodos de produção industrial vão tornar-se insustentáveis e a água vai transformar-se num bem valioso, gerando guerras entre populações. As cidades vão ser cinzentas e poluídas e as florestas vão ser algo raro, representando muito pouco da grandeza que já tiveram em outros tempos. Vamos enfrentar uma nova crise de refugiados, os chamados refugiados do clima, que podem chegar aos 50 milhões até ao fim desta década, segundo a ONU. 

É este o planeta onde queremos viver? A maioria das pessoas responderá que não, mas talvez seja preciso chegar a este ponto para que a humanidade faça um “restart” na forma como tem vivido.

Algumas mudanças necessárias para um futuro mais animador já estão a acontecer: a agricultura biológica tem crescido, o investimento nas energias renováveis tem sido maior, estilos de vida alternativos e sustentáveis ganham mais visibilidade e mais adeptos. Na maioria das vezes, a resposta para o futuro já está a ser escrita no presente, mas nem sempre conseguimos lê-la a tempo. Até porque se isto correr mal, o Homem vai sair sempre a perder e a sua existência na Terra poderá ser tão insignificante quanto um grão de areia no meio do deserto.

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Imagens: NASA

Ilustração: Os Gémeos

Paris aqui tão perto

14.11.15 | Alice Barcellos

Aqui tão perto. Leio as notícias de Paris e arrepio-me. Quando os alertas dos primeiros tiros chegaram ontem, pensei que seria só o começo. E foi.

Um horror desta dimensão causa sempre espanto e surpresa a todos. Mas, infelizmente, era expectável que a capital francesa voltasse a ser palco de mais um massacre de inocentes. O país é um dos que mais tem levantado a voz (e as bombas) contra o Estado Islâmico na Síria, além de ser um território fértil para o recrutamento jihad.

Podemos e devemos responder com fraternidade, usar a nossa liberdade como bandeira, seguir de cabeça erguida e tentar não ter medo. Mas temos medo e vamos ter cada vez mais. E vamos desconfiar, julgar os outros e evitar certos locais. É isso o que "eles" querem.

Vamos ter de aprender a viver com o terror e perceber que já estamos em guerra. Resta saber como e quando vamos combater.

E, depois, quem sabe, possamos voltar a não ter medo.

Mar

13.11.15 | Alice Barcellos
No verão confuso ali estavas
Entre toalhas, guarda-sóis e chinelos
Continuavas o teu ciclo a mercê
dos gritos, risos e choros infantis 
Nunca foste domado e neste verão não foi diferente
Não deste o teu melhor a quem tanto te desejou
durante tanto tempo
Viste mesmo assim as enchentes das férias 
e admiraste a força de vontade daqueles que esperavam
que a luz do sol revelasse as tuas cores mais bonitas
Em troca viram-te envolto em nevoeiro
Que teimava em roubar-nos o verão 
Mas não tiveste culpa
És generoso e deste o melhor que tinhas
 
Agora foram-se embora os banhistas 
Os veraneantes voltaram para rotina dos dias sem férias 
Agora voltas a ser imenso e só 
E quem te procura não vem pelo bom tempo
Vem só para te ver, mar
Vem para ouvir a tua voz 
Ondas a desenrolar sem fim
Vem para te contar segredos
Pensamentos silenciosos
Carregados no olhar
Vem pela vista enorme, dispersa
Pela imensidão aconchegante
 
Por entre os teus trilhos
caminho sozinha
Olhando para a praia 
Que agora é só minha 
 

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Encontrar a fé no Vaticano

08.11.15 | Alice Barcellos

Não posso dizer que tenha religião. Revejo-me nos valores cristãos mas fico por aí. Não consigo esquecer a máquina de poder, riqueza e opressão construída pela igreja católica ao longo dos séculos. Nunca consegui acreditar em milagres, santos e visões.

No que toca à religião sou quase como Sophia tão bem escreveu: “(...) o teu amor pelas coisas visíveis que é a tua oração em frente do grande Deus invisível”. Sei que há algo que me transcende, mas só o consigo encontrar naquilo que vejo, quer seja numa praia paradisíaca, quer seja numa obra de arte, ou numa magnólia em flor.

Assim que estando em Roma seria impossível não ir ao Vaticano, não para ver o Papa, que por acaso até estava a dar a sua audiência geral de quarta-feira, mas para ver outros “deuses”, aqueles que elevaram sua arte a uma escala (quase) divina.

Mais do que visitar a sede da igreja católica e o menor Estado do mundo, foi mesmo o teto da Capela Sistina e as cúpulas da Basílica de São Pedro que me motivaram para ser mais uma entre a multidão que todos os dias cruza os portões do Vaticano. É um mar de gente que caminha com um destino: a Praça de São Pedro – que realmente nos abraça e chama por nós.

Há alertas de carteiristas pelas ruas. Apertamos as mochilas, mas sem surpresas porque já tínhamos sido avisados para esta possibilidade. Apesar de termos comprado com antecedência a entrada para os Museus do Vaticano, lá fomos convencidos a entrar numa visita guiada por um guia cubano, que começou a meter conversa connosco quando quebrávamos a preguiça de uma manhã cinzenta numa chávena de expresso. O argumento que nos convenceu: fugir às filas homéricas para entrar na Basílica de São Pedro, a qual não tínhamos acesso com os nossos bilhetes. E valeu a pena ter pago mais um pouco pela visita guiada.

Primeiro porque ao fim de horas a ver obras de arte, que vão desde à antiguidade clássica, passando pelo Egito, até chegar aos mestres da escola flamenga e renascentista, não íamos, com certeza, ter disposição para estar horas na fila para entrar na basílica. Segundo, é tanta gente a visitar os museus e tantos grupos que quem tenta ir sozinho acaba por ser “esmagado” pela multidão. Terceiro, tivemos a sorte de apanhar um guia brasileiro, carioca, que deu um toque especial à visita. Uma aula de história contada de uma forma simples, bem-humorada e com alguns comentários anticlericais à mistura.

Foram algumas horas a caminhar pelas principais salas dos museus – seria impossível ver tudo num dia, a não ser que tenha preparação física e mental para percorrer sete quilómetros de galerias. Pelo meio, ficamos a saber como a igreja foi conseguindo formar a sua invejável coleção de obras de arte, que teve altos e baixos, progressos e retrocessos, ao sabor das vontades dos Papas, mais ou menos conservadores, das mudanças históricas, conflitos e guerras.

A nossa visita aos museus termina na galeria dos mapas, com um rico teto decorado com a técnica de pintura em três dimensões e de alto relevo. No fim do corredor, descemos as escadas de acesso à Capela Sistina, que com tantas pessoas a descer ao mesmo tempo até parecem mais apertadas do aquilo que são.

Entramos, finalmente, e nem de propósito temos um cantinho para sentar nos bancos que circundam o espaço. A paz e o silêncio que deveríamos encontrar num templo não existem, graças à torrente de pessoas que circula por ali. “Silêncio, shhhhhhhhh!”, ouvimos, bem como a perseguição dos seguranças a quem tenta tirar fotos, mesmo com todos os avisos de que é proibido.

Mas, quando olhamos para cima e perdemos a vista no fresco pintado por Michelangelo, esquecemos a confusão que nos envolve e encontramos uma paz possível num momento de contemplação que prolongamos até que nos doa o pescoço. E, sim, toda a gente deveria ver esta obra prima pelo menos uma vez na vida.

Seguindo para a Basílica de São Pedro, somos esmagados pela grandeza da construção, que, ao longe, não parecia tão gigantesca. Emocionamo-nos, mais uma vez, com a perfeição esculpida na Pietà pelas mãos de um então jovem mestre, que gravaram também para sempre o seu nome na história da arte – Michelangelo começou a esculpir a Pietà aos 23 anos.

Cá fora, as cadeiras desordenadas, com ar de fim de festa, ainda faziam lembrar a audiência geral do Papa Francisco. A azáfama de turistas é contínua. Mais uma selfie, mais um foto ao lado da Guarda Suíça, com o seu traje colorido. Vamos deixando para trás a Basílica de São Pedro e nos desprendendo dos braços enormes da sua praça. Saímos do Vaticano cansados e com fome, mas com um reforçado sentimento de fé na humanidade e em tudo de belo que ela é capaz de construir.

 

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