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Diário de fuga

Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

Diário de fuga

Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

Portugal não é um país machista, nem racista. Está tudo bem até levarmos murros da realidade

07.02.19 | Alice Barcellos

Lembro-me que quando comecei a trabalhar como jornalista uma das primeiras reportagens que fiz foi sobre violência doméstica. Foi um trabalho no âmbito de alguma data relacionada com o tema, aqueles dias que se marcam no calendário para que se fale sobre um assunto importante e sério. Assinala-se na rádio, fala-se nas televisões, publicam-se reportagens, mas no dia seguinte já quase ninguém se lembra e há outra data, talvez de um assunto engraçado e ligeiro, que também vai ser anunciado na rádio, falado nas televisões e partilhado nas redes sociais.

 

Ainda procurei mas não encontrei o link deste trabalho, já lá vão quase dez anos. O que ficou mesmo gravado na minha mente daquelas entrevistas foram as palavras de muitas especialistas na matéria sobre o principal problema da violência doméstica em Portugal: a falha do sistema em proteger as mulheres que são vítimas. 

 

Hoje, com o tema mais atual do que nunca e com os assustadores números de mulheres mortas por homens só em janeiro, infelizmente, não há nada a acrescentar. O sistema continua a falhar e as mulheres continuam a morrer na mão de maridos, companheiros, namorados ou homens com quem já tiveram alguma destas relações. 

 

Da polícia à justiça, passando por outros profissionais a quem mulheres agredidas recorrem, existem inúmeros relatos de descaso, irrelevância e falta de atenção a situações de violência que ficam sinalizadas e, depois, têm o pior desfecho possível: morte(s).

 

Podemos criar leis mais duras contra os agressores e garantir mais segurança às vítimas. As falhas do sistema podem ser corrigidas e é verdade que têm existido progressos nas leis que punem a violência contra mulheres e contra seres humanos no geral. 

 

Mas e as mentalidades, como se corrigem? A violência doméstica está diretamente ligada com outro problema grave da sociedade: o machismo. Tal como outros "ismos", há sempre quem diga que isso não existe em Portugal. Há umas semanas, discutíamos se éramos ou não um país racista e muitas vozes sonantes fizeram questão de dizer que não, mas há estudos que demonstram o contrário. E as afirmações que ouvimos por aí também provam que há muita gente que acredita que existem raças inferiores. Quem nunca ouviu afirmações racistas em Portugal?

 

O mesmo digo para afirmações machistas. Uma mulher não pode cortar o cabelo como quer ou usar uma tal roupa porque o namorado não gosta ou não deixa. Uma mulher não pode sair sozinha com as amigas porque o marido não aceita. Uma mulher que usa um decote está a pedir para ser violada. Uma mulher que tenha passado por várias relações é uma puta. Uma mulher mais velha solteira é uma descompensada. Há mulheres que gostam de apanhar. Ela até mereceu. E assim, entre tanta coisa errada, quase que se torna certo que uma mulher possa apanhar do homem. 

 

Quantas vezes já ouviram frases do género da boca de pessoas que vos são mais ou menos próximas? Quantas mulheres conhecem que vivem em função do marido/companheiro? Que são escravas do trabalho doméstico - porque assim foram educadas -  e ainda se curvam perante às críticas e ordens do marido? Quantas vezes não vemos estas posições e formas de viver a vida refletidas em vários setores da sociedade?

 

Creio que todos sabemos a resposta. Só não vê quem não quer ou quem compactua com esta forma de pensar. Enquanto houver machismo vai continuar a existir feminicídio. Enquanto houver desrespeito e desigualdade vai continuar a existir violência.

 

Felizmente, a mudança já começou. Há cada vez mais relacionamentos vividos de igual para igual, casais que se tratam como parceiros, valorizando-se mutuamente e educando os filhos (e também os pais, muitas das vezes) para a igualdade de género.

 

O Estado tem a obrigação de proteger as vítimas de violência doméstica, pode e deve fazer mais e melhor para estas mulheres que sofrem todos os dias, quase sempre em silêncio. Mas a verdadeira mudança começa dentro das quatro paredes - do quarto, da cozinha, do infantário, da escola, do escritório, do consultório, da esquadra, da assembleia e do tribunal.

 

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Imagem: Pixabay