Abriu os olhos lentamente e teve dificuldades em ver, encandeada pelo sol forte. Tinha o corpo todo dorido e não conseguia recordar dos últimos momentos antes de subir à superfície. Lembrou-se que nadou decidida e, ao mesmo tempo em que este pensamento lhe veio à mente, tentou mexer a cauda mas não foi capaz.
Finalmente, voltou a ver com clareza e, para seu espanto, tinha pernas. Umas lindas pernas torneadas e compridas, uns pés alongados e cinco dedos em cada um. Que fantástico! Nunca tinha imaginado que seria possível transformar-se, apesar de já ter ouvido as antigas lendas do seu povo, que contavam histórias daqueles que tinham decidido aventurar-se em terra firme e nunca mais voltaram.
Quando se sentou na areia, numa praia paradisíaca, reparou que estava nua. Passou as mãos pelas pernas, retirando as últimas escamas que ainda se desprendiam da pele nova e olhou à volta. Não viu ninguém. Ainda pensou em mergulhar outra vez no imenso azul e voltar ao conforto da sua casa, mas sabia que se voltasse a mergulhar iria desperdiçar a única chance de se transformar. Ela tinha uma missão e não iria desistir sem tentar.
Começou a caminhar em direção a outra praia e teve muitas dificuldades em ultrapassar o caminho rochoso que ligava os dois areais. “A nadar já tinha lá chegado”, pensou. Quando finalmente alcançou a outra praia, ficou, mais uma vez, espantada, por perceber que todos os humanos também estavam nus. Sempre que os tinha visto, quer fosse em barcos, quer fosse noutras praias ou mesmo dentro de água, estes seres da terra estavam sempre vestidos. “Ao menos, não dou nas vistas”, pensou, enquanto continuava a caminhar.
Pelo sim, pelo não, furtou um vestido de uma mulher que brincava com o filho na água e continuou a caminhar, a sentir o movimento, como se cada passo fosse uma nova descoberta. Ainda não sabia muito bem o que procurava, mas tinha a certeza que a resposta não estava ali naquela praia.
Quando deixou a praia, passou por uma bela floresta de pinheiros. Chegou à estrada e sentiu medo. Viu máquinas com motores, que se assemelhavam a barcos mas tinham rodas, a passar com grande velocidade e ponderou voltar para trás. Mas não podia. Tinha que continuar. Havia avistado algumas construções na próxima enseada e tinha que chegar até lá para falar com alguém. Continuou o seu caminho.
O sol já se aproximava da linha do horizonte quando ela chegou à aldeia. Ali, as pessoas já não pareciam tão felizes como aquelas que vira na praia. Puxou os longos cabelos pretos, levemente esverdeados, para baixo, de forma a tapar as guelras, pois sentiu o olhar curioso dos rapazes que brincavam com redes de pesca velhas e emaranhadas num canto da doca.
Até que, sentado no fim de um pequeno promontório, com longas barbas brancas e um cachimbo no canto da boca, ela viu a pessoa com quem queria falar. E dirigiu-se até ela. Com medo que lhe saíssem os cânticos indecifráveis com os quais se comunicava com os seus iguais, ela tossiu, antes de falar o primeiro “olá”. Ao que o velho lobo do mar encarou-a e respondeu com um aceno leve de cabeça.
- Preciso falar com o chefe desta tribo, trago um aviso muito importante do meu povo, que vive ali - disse, apontando em direção ao mar.
O pescador, que a vida toda estivera à espera daquele momento, teve a certeza absoluta de que estava perante a confirmação do que sempre ouvira dizer nas antigas lendas. Ela continuou a falar:
- O vosso povo está a destruir a nossa casa, enchendo-a de lixo e esgotando os nossos alimentos. As nossas guardiãs, as baleias, estão a morrer envenenadas por um género de algas que nunca se desfaz e se prende nas barbatanas das tartarugas e de outros animais. Em breve, tememos pelo futuro da nossa própria espécie. Precisamos travar esta destruição de alguma forma. Por favor, ancião, diga-me como.
O velho, emocionado, com o olhar salgado, respondeu:
- Sereia, o mundo aqui em cima é muito mais complicado do que possas imaginar. Não temos um chefe, mas vários; não temos uma só tribo, mas várias. Vivemos sempre em confronto uns com os outros. Os chefes não se entendem e querem sempre mais dinheiro. Em nome disso, estão a destruir o único lugar onde podemos viver. Se descobrem que és diferente, não vão parar até conseguirem explorar e dominar o teu povo. Lamento, mas aqui não vais conseguir respostas. E estarás mais segura nas profundezas do mar.
Ela sentiu escorrer uma lágrima na face e, pela primeira vez, sentiu o gosto salgado das lágrimas. Não deu tempo para que a segunda escorresse, saltou do promontório para o mar e, quando veio outra vez à superfície, as pernas já tinham dado lugar à cauda. Ao longe, viu o velho pescador. Ele acenava, mas ela não acenou de volta. Nenhuma ameaça era maior do que o olhar sem esperança que recebeu daquele homem.
O sol se pôs e a noite encheu o mar de mistério. A sereia mergulhou para nunca mais voltar.
Texto escrito no âmbito do Desafio dos Pássaros.
Tema da semana (com atraso): Acordaste nu, sem te recordar de nada, numa ilha deserta. Vejam aqui todos os textos deste desafio de escrita dos blogues do SAPO.