Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Diário de fuga

Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

Diário de fuga

Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

A guardiã

28.11.19 | Alice Barcellos

IMG_7013.JPGNão me poderia ter calhado melhores donos. Nunca vou esquecer o dia em que eles me foram buscar à casa da minha mãe e, entre tantos irmãos e irmãs, escolheram-me.

Chamaram-me Vicky, um nome que assenta bem na minha elegância e raízes escocesas. Mas também costumam chamar-me "Mi" ou "Pelúcia", em homenagem à outra Collie que viveu nesta casa antes de mim e da qual os donos nunca se vão esquecer. 

Sempre fui muito feliz nesta casa, principalmente, quando chega sexta-feira e sei que vou estar dois dias seguidos com os donos quase sempre comigo. Muitas vezes, vamos à praia, o nosso lugar favorito.IMG_7407.JPGNão existe maior liberdade do que correr no areal e sentir o vento a despentear os meus longos pelos. Se a dona levar a minha bolita, o dia fica perfeito. Caso contrário, tento brincar com as minhas outras irmãs, a Daisy e a Polly, mas elas interessam-se mais por andar a farejar tudo o que encontram pelo caminho, inclusive gaivotas mortas, que nojo!

No fim de semana, tento estar constantemente atrás dos meus donos e estou atenta ao que eles andam a fazer em casa, quando não estou a dormir ao pé da cama - ou em cima dela, mesmo sabendo que os donos não querem, eles acabam sempre por deixar.

Fico louca de felicidade quando a nossa humana mais pequenina vem passar o fim de semana connosco. Apesar de saber que ela está mais crescida e já não me acha tanta piada como antes, sei que ela nunca se vai esquecer de mim e eu vou estar sempre aqui para olhar por ela.

Serei sempre a guardiã dos meus donos, nos bons e maus momentos, estarei sempre à espera que eles cheguem à casa para os receber da única maneira que eu sei: com saltos, lambidelas e muita alegria. "Parece que já não me vês há um século", diz, muitas vezes, a dona. Pelos sorrisos e olhares ternurentos que recebo deles, pelo amor puro que sinto nestes momentos, sei que já valeu a pena a minha passagem por este mundo.IMG_1983.JPGTexto escrito no âmbito do Desafio dos Pássaros.

Tema da semana: Um dia na tua família... do ponto de vista do teu animal de estimação. Vejam aqui todos os textos deste desafio de escrita dos blogues do SAPO.

O encontro

23.11.19 | Alice Barcellos

Abriu os olhos lentamente e teve dificuldades em ver, encandeada pelo sol forte. Tinha o corpo todo dorido e não conseguia recordar dos últimos momentos antes de subir à superfície. Lembrou-se que nadou decidida e, ao mesmo tempo em que este pensamento lhe veio à mente, tentou mexer a cauda mas não foi capaz.

Finalmente, voltou a ver com clareza e, para seu espanto, tinha pernas. Umas lindas pernas torneadas e compridas, uns pés alongados e cinco dedos em cada um. Que fantástico! Nunca tinha imaginado que seria possível transformar-se, apesar de já ter ouvido as antigas lendas do seu povo, que contavam histórias daqueles que tinham decidido aventurar-se em terra firme e nunca mais voltaram.

Quando se sentou na areia, numa praia paradisíaca, reparou que estava nua. Passou as mãos pelas pernas, retirando as últimas escamas que ainda se desprendiam da pele nova e olhou à volta. Não viu ninguém. Ainda pensou em mergulhar outra vez no imenso azul e voltar ao conforto da sua casa, mas sabia que se voltasse a mergulhar iria desperdiçar a única chance de se transformar. Ela tinha uma missão e não iria desistir sem tentar.

Começou a caminhar em direção a outra praia e teve muitas dificuldades em ultrapassar o caminho rochoso que ligava os dois areais. “A nadar já tinha lá chegado”, pensou. Quando finalmente alcançou a outra praia, ficou, mais uma vez, espantada, por perceber que todos os humanos também estavam nus. Sempre que os tinha visto, quer fosse em barcos, quer fosse noutras praias ou mesmo dentro de água, estes seres da terra estavam sempre vestidos. “Ao menos, não dou nas vistas”, pensou, enquanto continuava a caminhar.

Pelo sim, pelo não, furtou um vestido de uma mulher que brincava com o filho na água e continuou a caminhar, a sentir o movimento, como se cada passo fosse uma nova descoberta. Ainda não sabia muito bem o que procurava, mas tinha a certeza que a resposta não estava ali naquela praia.

Quando deixou a praia, passou por uma bela floresta de pinheiros. Chegou à estrada e sentiu medo. Viu máquinas com motores, que se assemelhavam a barcos mas tinham rodas, a passar com grande velocidade e ponderou voltar para trás. Mas não podia. Tinha que continuar. Havia avistado algumas construções na próxima enseada e tinha que chegar até lá para falar com alguém. Continuou o seu caminho.

O sol já se aproximava da linha do horizonte quando ela chegou à aldeia. Ali, as pessoas já não pareciam tão felizes como aquelas que vira na praia. Puxou os longos cabelos pretos, levemente esverdeados, para baixo, de forma a tapar as guelras, pois sentiu o olhar curioso dos rapazes que brincavam com redes de pesca velhas e emaranhadas num canto da doca.

Até que, sentado no fim de um pequeno promontório, com longas barbas brancas e um cachimbo no canto da boca, ela viu a pessoa com quem queria falar. E dirigiu-se até ela. Com medo que lhe saíssem os cânticos indecifráveis com os quais se comunicava com os seus iguais, ela tossiu, antes de falar o primeiro “olá”. Ao que o velho lobo do mar encarou-a e respondeu com um aceno leve de cabeça.

- Preciso falar com o chefe desta tribo, trago um aviso muito importante do meu povo, que vive ali - disse, apontando em direção ao mar.

O pescador, que a vida toda estivera à espera daquele momento, teve a certeza absoluta de que estava perante a confirmação do que sempre ouvira dizer nas antigas lendas. Ela continuou a falar:

- O vosso povo está a destruir a nossa casa, enchendo-a de lixo e esgotando os nossos alimentos. As nossas guardiãs, as baleias, estão a morrer envenenadas por um género de algas que nunca se desfaz e se prende nas barbatanas das tartarugas e de outros animais. Em breve, tememos pelo futuro da nossa própria espécie. Precisamos travar esta destruição de alguma forma. Por favor, ancião, diga-me como.

O velho, emocionado, com o olhar salgado, respondeu:

- Sereia, o mundo aqui em cima é muito mais complicado do que possas imaginar. Não temos um chefe, mas vários; não temos uma só tribo, mas várias. Vivemos sempre em confronto uns com os outros. Os chefes não se entendem e querem sempre mais dinheiro. Em nome disso, estão a destruir o único lugar onde podemos viver. Se descobrem que és diferente, não vão parar até conseguirem explorar e dominar o teu povo. Lamento, mas aqui não vais conseguir respostas. E estarás mais segura nas profundezas do mar.

Ela sentiu escorrer uma lágrima na face e, pela primeira vez, sentiu o gosto salgado das lágrimas. Não deu tempo para que a segunda escorresse, saltou do promontório para o mar e, quando veio outra vez à superfície, as pernas já tinham dado lugar à cauda. Ao longe, viu o velho pescador. Ele acenava, mas ela não acenou de volta. Nenhuma ameaça era maior do que o olhar sem esperança que recebeu daquele homem.

O sol se pôs e a noite encheu o mar de mistério. A sereia mergulhou para nunca mais voltar.

GOPR0114.JPG

Texto escrito no âmbito do Desafio dos Pássaros.

Tema da semana (com atraso): Acordaste nu, sem te recordar de nada, numa ilha deserta. Vejam aqui todos os textos deste desafio de escrita dos blogues do SAPO.

Querida, Lili

08.11.19 | Alice Barcellos

Querida, Lili

Quando esta carta chegar a ti, provavelmente, estarás numa brincadeira qualquer pelo jardim, a correr descalça, a brincar de ser sereia na piscina ou a vestir os vestidos antigos, esquecidos nos armários da casa. Pelo que me lembro, estas são algumas das tuas brincadeiras favoritas e não gostaria, de todo, de interromper-te com estas palavras. Espero, contudo, que seja o teu avô a ir entregar-te a carta, ele que sempre trocou correspondência de uma forma tão singela e carinhosa com a família que estava longe. Escreveu inúmeras cartas com a sua letrinha espremida e, nos últimos anos, tremida.

Já se passaram alguns anos desde a última vez em que estivemos juntas, mas, em certos dias, parece que foi ontem. Lembro-me sempre da criança curiosa e alegre que és, tentando manter estas características comigo, mesmo quando este complicado mundo dos adultos insiste em cortar-nos as asas.

Ainda não fazes ideia, mas esta alegria vai ajudar-te a ultrapassar os momentos mais sombrios da tua vida. E fico feliz ao saber que as pessoas que tens à tua volta contribuem para que sejas uma menina boa, verdadeira, leal e honesta - valores cada vez mais valiosos, por serem raros, no nosso mundo.

Sei que os teus dias são longos, arrastam-se entre as idas para a escola, as corridas na hora de voltar para a casa, o almoço delicioso com os avós, as brincadeiras em casa das tuas melhores amigas, as brigas com o teu irmão, os mergulhos na piscina, os banhos de chuva, os mimos da tua mãe. As montanhas, os pássaros, os livros, a música, a dança, os quadros e todas as coisas bonitas que fazem parte da tua vida. Aproveita tudo isso pois quando fores mais crescida vais ver que o tempo começa a passar muito rápido. Vão dizer-te isso, mas não vais compreender porque, do alto dos teus oito anos, vais achar que ainda tens todo o tempo do mundo. E tens.

Que a vida te vai apresentar grandes desafios, que vais ter dias tristes, de mal com o mundo e contigo, que não vai ser fácil - isso terás que descobrir por ti própria (e quando julgares que já sabes alguma coisa do mundo e das pessoas, vais ver que sabes muito pouco).

Assim sendo, aproveita cada dia - como te ensinou a tua avó, "carpe diem" - e guarda num lugar cativo do teu coração o amor que recebes da tua família. Este amor não tem prazo de validade e vai estar contigo para sempre. Vai ser ele que te vai confortar quando estas pessoas estiverem longe e quando aprenderes o verdadeiro significado da palavra saudade.

Um beijinho grande e um abraço apertado desta amiga que te escreve do outro lado do Atlântico,

Alice

Vila Nova de Gaia, 08/11/2019

P.S.: Espero que guardes a minha carta com carinho, na tua caixinha de cartas, junto com os postais que o teu pai te envia das viagens dele e as cartas que recebes das tuas melhores amigas, escritas com letras bonitas, em papel de carta, auto-colantes e envelopes catitas. 

debby-hudson-DR31squbFoA-unsplash.jpgImagem: Debby Hudson / Unsplash

Texto escrito no âmbito do Desafio dos Pássaros.

Tema da semana: Escreve uma carta para a criança que foste. Vejam aqui todos os textos deste desafio de escrita dos blogues do SAPO.

 

Serra

07.11.19 | Alice Barcellos

serra2.jpgserra3.jpgAqui tudo encaixa num quebra-cabeça silencioso

que nos deixa sem palavras

e para que falar se temos tanto para ouvir

As mensagens nos chegam em formato de luz e sombras

os raios do sol a furar entre as folhas

a água a correr entre cursos e riachos

o chilrear dos pássaros que parecem voar apressados

e para que a pressa se encontramos um tempo suspenso

É o tempo da pedra, da árvore, do rio e das montanhas

Quanto tempo levou para que os musgos e líquenes pintassem

este quadro abstrato que vemos num tronco ao acaso?

Quanto tempo levou para que estas pedras ficassem assim

perfeitamente expostas numa galeria a céu aberto?

Aqui o tempo é anterior à nossa existência

e para que existir se fazemos parte de algo maior

Basta deixar ir porque aqui tudo vem

no tempo certo

serra1.jpg