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Diário de fuga

Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

Diário de fuga

Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

Anúncio de emprego

26.12.19 | Alice Barcellos

winter-mood-1938592_1920.jpgA loja estava fechada. A penumbra acentuava o silêncio e os poucos raios de sol que conseguiam furar entre as cortinas cor de vinho faziam ver o pó que se acumulava em cima dos brinquedos. As bonecas de porcelana perdiam o brilho, os ursos de pelúcia cheiravam a mofo, os carrinhos tinham encravado na pista e os soldadinhos de chumbo pareciam vencidos. "Perderam a guerra", pensava com os meus botões.

Lá fora, nevava muito e uma camada fofa de neve acumulava-se em cima dos telhados. Talvez este fosse o último Natal que conseguisse ter as portas abertas. Desde que o bom velhinho pendurou as luvas, a tarefa ficou mais difícil. Um só funcionário para tantos brinquedos, crianças cada vez mais exigentes, a invasão dos aparelhos eletrónicos que roubam a magia dos bons e velhos tempos, do tempo em que o simples ato de desembrulhar uma prenda - tentar descobrir pelo som ou pelo tato o que havia naquela caixa - era, por si só, um presente. 

Ainda assim, tenho de continuar a tentar. Quero manter o legado que recebi do meu antigo patrão, inspiração de tantos anos. Pus um anúncio no jornal para ver se recebo alguns candidatos que queiram ajudar-me nesta árdua tarefa de oferecer brinquedos numa altura em que o dinheiro compra quase tudo. Escrevi assim:

A loja Noel & Rudolfo procura um ajudante para consertar brinquedos antigos e distribui-los a crianças na noite de 24 para 25 de dezembro. Pretende-se um funcionário para trabalhar em part-time no arranjo dos brinquedos, mas que tenha disponibilidade total para ajudar nas entregas durante os dias acima citados. Os interessados devem dirigir-se ao endereço: Tähtikuja 1, 96930 Rovaniemi, Finlândia.

Enquanto vejo a neve a cair e arranjo este antigo quebra-nozes encravado, aguardo por algum candidato que queira ajudar-me nesta árdua e nobre tarefa que é conseguir aquecer o coração das crianças num mundo cada vez mais frio.

Toca o sino da campainha. Assoo o meu nariz, vermelho já de tantas assoadelas, e arranjo o meu cachecol verde para atender mais um candidato. Talvez seja desta. Prometo desistir só quando o último brinquedo sair destas prateleiras e a última criança desembrulhar a última prenda. Até lá, a magia tem de continuar a existir. 

Imagem: Pixabay

Texto escrito no âmbito do Desafio dos Pássaros.

Tema da semana: O Pai Natal decidiu reformar-se e as entrevistas começam esta semana. Descreve uma dessas entrevistas na perspectiva do recrutador de recursos humanos: A Rena Rudolfo. Vejam aqui todos os textos deste desafio de escrita dos blogues do SAPO.

Santiago de Compostela: Peregrinação às tapas

23.12.19 | Alice Barcellos

Sou daquelas pessoas que acredita até ao último momento que o tempo vai ficar melhor quando tenho uma viagem marcada. Mesmo sabendo que as previsões apontam para dias de chuva, há sempre aquela voz interior otimista que tenta convencer-me de que um sol radiante pode aparecer sem avisar. Obviamente, isso não costuma acontecer, principalmente quando vais viajar para a Galiza. Se achamos que no Porto o outono é chuvoso, isso é porque não vivemos na Galiza. A diferença não deve ser muita mas quero acreditar que os nossos vizinhos do "andar de cima" sofrem mais com o mau tempo do que nós. 

Não, esse texto não é uma revisão meteorológica sobre o outono que passou, mas sim sobre uma viagem que fiz a Santiago de Compostela. Mais uma vez a Galiza ajudou-me a descobrir a beleza dos dias de chuva, tal como já me tinha acontecido numa ida a Vigo

Já lá iam quase 15 anos (estou a ficar velha) desde a última vez que tinha ido a Santiago de Compostela, curiosamente também foi numa viagem em família, e há muito que tinha o desejo de regressar. Ao longo deste tempo, o Caminho foi ficando cada vez mais popular nos sites de viagens, como uma daquelas experiências para se ter uma vez na vida, e, de facto, são cada vez mais pessoas que conheço que fazem ou fizeram o Caminho de Santiago e o descrevem sempre como uma experiência única. 

Não, este texto não é sobre fazer o Caminho de Santiago, não foi desta que o fiz e, honestamente, não sei se é o meu género de viagem. Esse texto é simplesmente um pequeno guia de uma escapadinha a Santiago de Compostela em família (eu e o meu irmão), com guarda-chuvas partidos, molhas e boa comida. Isso porque apesar de ser uma cidade conhecida pela religiosidade e pelo centro histórico medieval imaculado, Santiago de Compostela é também uma boa opção para quem quer fazer uma escapadinha de fim de semana sem grandes pretensões. Simplesmente percorrer a cidade a pé e ir descobrindo as flores e as "marias" escondidas entre o granito escuro dos edifícios imponentes.

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Foi o que fizemos. Depois de muito bem instalados no Boutique Hotel Literario San Bieito (recomendo), esperamos que o dilúvio que nos recebeu passasse e fizemo-nos ao caminho com a intenção de provar as melhores tapas da cidade. Ficar dentro do casco histórico é uma vantagem para explorar Santiago. Para quem vem de carro, há opção de deixá-lo estacionado em parques subterrâneos (paguei 12 euros por dia) e, desta forma, tem-se liberdade para andar a pé, sem o stress de ter de pegar no carro, até porque não é permitido circular de carro em quase todo o centro histórico.

O céu já estava pintado de noite carregada quando começamos a nossa peregrinação - íamos com algumas paragens gentilmente sinalizadas pela menina que nos recebeu no hotel e nos deu dicas de lugares nada turísticos, frequentados por locais. Era isso mesmo que procurávamos. Com essa massificação e uniformização do turismo, fico sempre com receio de, ao visitar uma cidade, não conseguir captar a sua essência, não conseguir encontrar aqueles locais mais tradicionais que conservam a alma do lugar. Felizmente, Santiago consegue manter esta atmosfera tradicional, bem como sítios que não se renderam às modas dos hambúrgueres artesanais, bowls, smoothies e estas cenas "instagramáveis" que parecem querer tomar conta das nossas cidades. 

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Primeira paragem: Maria Castaña. Sentimo-nos acolhidos pelo ambiente quentinho e pelas mesas rústicas de madeira. Paredes em pedra, com pequenas moedas de cêntimos encaixadas nos relevos, uma roda de amigos ao balcão a beber umas "cañas" depois do trabalho, dois turistas que conversavam atrás de nós e pareciam estar a conhecerem-se naquele momento.

Duas cervejas para a nossa mesa, acompanhadas de uma tapa de feijoada. Comida de conforto num potinho: feijão branco a desmanchar-se e uma rodela de chouriço que me conquistaram, de imediato, o coração. Ainda ficamos a ver o menu, indecisos em pedir mais qualquer coisa, mas, após terminar, decidimos seguir em frente e continuar a explorar, aproveitando a trégua que a chuva nos dava.

Depois de caminhar mais um pouco pelas ruas estreitas, escolhemos sentar ao balcão de O Boteco. O nome brasileiro não tira o peso histórico do edifício. Mais duas cañas, desta vez acompanhadas com montaditos, entre os quais, gostei mais do de polvo com queijo. Lá fora, a chuva recomeçava a cair e peregrinos passavam com longas capas de plástico a proteger as mochilas. 

Nem parecia terça-feira quando entramos no Tita, especialista em tortilhas - mesas cheias, grupos de jovens a lembrar que Santiago é uma cidade universitária e muitas tortilhas a sair. Ficamos impressionados com a descrição da tortilha grande no menu: 30 ovos, 2,5 quilos de batatas e azeite. Não cheguei a ver, mas imaginei uma tortilha do tamanho da mesa! Contentamo-nos com uma dose individual, servida como tapa, mas que conseguiu demonstrar a fama do lugar, estava deliciosa.

Já não havia espaço na barriga para muito mais e a última paragem da noite foi escolhida pela quantidade de gente que se concentrava à porta, a fumar, a beber e a conversar. O Riquela parecia ser um bar animado para terminar a noite. E, sem prever, acabamos ainda por assistir a um espetáculo de comédia/improviso que estava a decorrer no pequeno palco ao fundo do espaço. Bem interessante! Não posso dizer o mesmo das tapas que vieram para a mesa, mas também não se podia pedir muito mais com a quantidade de pessoas que estavam a servir naquela noite. Perdoamos, até porque também já não havia fome para muito mais. 

Estava feita a peregrinação noturna. Chegamos ao hotel sem o guarda-chuva - não resistiu ao vento e à chuva e foi parar ao contentor de lixo - e com uma molha (mais uma!). No dia seguinte, ainda deu para saborear a deliciosa tarte de amêndoas de Santiago - um ótimo souvenir para levar para a casa. Foi o que fizemos, depois de ter ido ver a grandiosa Catedral, labirinto de andaimes no interior, por estar em obras. A chuva que continuava a cair tirou-nos o ânimo de continuar a explorar a cidade. Salvaram-nos as muitas arcadas que cortam o centro de Santiago e que são o melhor abrigo para estes dias em que o céu parece não querer parar de fazer cair água.

Ficou a promessa de voltar um dia, quem sabe com sol, quem sabe a caminhar... Com a certeza de que vamos ser bem recebidos (e alimentados) de qualquer das formas.

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Amores impossíveis

21.12.19 | Alice Barcellos

A chuva caía incessantemente há semanas – ou seriam meses? A cidade vestia-se de cinza, os carros passavam silenciosos, deslizando na estrada molhada, as lojas recolhiam as bancas e desligavam a música, as pessoas andavam cabisbaixas e escondiam a palidez das faces dentro de golas altas e casacos pesados. Nos silêncios partilhados nos transportes públicos pairavam as memórias dos dias de sol que, naquele momento, pareciam uma miragem ou uma fotografia de uma qualquer publicidade inacessível.

Os parques esvaziavam-se de gente, de cães a correr e de crianças a brincar. As árvores despiam-se de folhas e os bancos permaneciam vazios, enquanto a relva ficava cada vez mais afogada pela água empapada.

Num canto de um banco, entre dois fortes carvalhos, uma menina chorava incessantemente há horas – ou seriam dias? Estava com um vestido verde sem mangas, desbotado pela chuva, e as suas lágrimas já nem se notavam em meio a tanta água.

Debaixo do seu guarda-chuva preto, o rapaz, que passeava pelo parque, avistou aquela frágil figura ao longe e foi sentar-se ao seu lado, agasalhando-a com o seu sobretudo castanho e tentando secar as suas lágrimas com o lenço que trazia no bolso da camisa, apertada até ao último botão.

- O que se passa contigo, menina? Porque estás aqui abandonada neste banco de jardim?

- Estou perdida. Fiquei sem rumo no meio desta chuva e deste céu sem cor. Preciso de uma brisa amena e de uma brecha de luz para encontrar o meu caminho.

- Pois, mas, neste momento, terás de esperar. Esta é altura de recolhimento e o pior ainda está por vir. Daqui a nada, tudo ficará coberto de branco e este vestido leve que trazes não será o suficiente para manter-te quente.

- Não nasci para isto! – exclamou a menina, revoltada com a situação.

- Nunca te disseram que para haver flores, é preciso haver chuva? Os momentos mais sombrios ensinam-nos a encontrar a luz que trazemos sempre dentro de nós – respondeu-lhe, calmamente, o rapaz sério.

A menina-primavera sentiu-se segura ao lado do rapaz-outono e bem mais quente dentro do seu sobretudo castanho. Seguiram, juntos, à procura de uma lareira e de uma chávena de chá fumegante para esperarem - ela impaciente e ele resignado - pela passagem do senhor-inverno.

O rapaz-outono sabia que era sempre assim. A menina-primavera nunca ficava. Ia sempre em direção ao sol, em busca daqueles breves instantes em que se cruzava com o menino-verão para, depois, perder-se no meio das copas frondosas das árvores. Até que as primeiras folhas começassem, uma vez mais, a cair e ela voltasse a sentar-se num qualquer banco de jardim.

winter-4680354_1920.jpgImagem: Pixabay

Texto escrito no âmbito do Desafio dos Pássaros.

Tema da semana: Não nasci para isto. Vejam aqui todos os textos deste desafio de escrita dos blogues do SAPO.

Uma rosa em Nova Iorque

13.12.19 | Alice Barcellos

Nova Iorque no verão pode ser sufocante. As ruas de Manhattan estão apinhadas de gente, erguem-se arranha-céus para onde quer que se aponte o olhar. O cheiro a suor no metro é difícil de aguentar e eu arrasto-me até ao nosso pequeno flat para tentar refrescar-me e fugir da confusão. Mas quando abro a porta, tropeço nesta desarrumação de telas encostadas, cavaletes, restos de tintas, pincéis por lavar, livros empilhados, croquis, esboços... Nunca pensei que fosse tão difícil dividir a existência com um artista.

Nestes dias, sinto saudades de casa e da minha família. Do meu quarto de vestir, das minhas criadas, dos serões a tocar piano e a tentar agradar os convidados, a ser uma boa menina aos olhos dos meus pais. Ah, memórias de um tempo que não volta atrás.

Abri mão de um casamento com um bom partido, de uma vida estável, de um estatuto; tudo em troca de um sonho: ser livre. Mas a única vez que me senti, de facto, livre foi durante aquela travessia do Atlântico, a bordo daquele grande e luxuoso paquete, quando sentia o vento frio a soprar-me na face, quando me apaixonei pela primeira vez.

Deixei tudo para trás e vim para Nova Iorque com este objetivo. Contudo, estou confinada neste apartamento sem ventilação, a lavar pincéis duros e a imaginar como seria a minha vida se não tivesse embarcado naquele navio.

O tempo roubou-me a beleza e o viço da juventude. Jack continua o mesmo conquistador, entregue aos vícios e à boémia nova-iorquina. Todos os meses, encontra uma modelo mais nova e mais bela para pintar nos seus quadros. Mas continua a dizer-me que o seu coração só tem uma única dona: eu.

Entre as aulas de piano que dou e as reuniões com as sufragistas, passo os dias sozinha, à espera que ele chegue à casa para me retribuir um sorriso e um “bom dia”, quem sabe um beijo na testa. Não gosto de ter estes pensamentos, mas, nestes dias sufocantes, imagino o que poderia ter sido da minha vida se ele tivesse ficado no fundo mar, "enterrado" com todas as outras vítimas daquele fatídico acidente. Algumas amigas dizem para deixá-lo de vez. E, só assim, vou conseguir ser, de facto, livre. 

Ouço a maçaneta da porta a rodar. Jack chega a casa, traz uma rosa vermelha entre os dentes e, com um sorriso e olhar meigo, pega-me pela mão e, ao mesmo tempo em que me põe a flor no regaço, diz:

- Bom dia, minha querida Rose. Está um belo dia de verão. Vamos dar um passeio ao Central Park?

Caminhamos de mãos dadas pelo parque, vemos as crianças a brincar e os jovens a namoriscar. Nestes momentos, sinto-me feliz e esqueço-me de tudo o resto. Posso ter abdicado de muito, mas, ao menos, escolhi ficar ao lado do homem que amo.

Se sobrevivemos ao maior naufrágio da história, vamos conseguir sobreviver a mais um verão em Nova Iorque.

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Foto: Nova Iorque em 1931, construção do Empire State Building / Wikipedia 

Texto escrito no âmbito do Desafio dos Pássaros.

Tema da semana: Reescreve o final de um filme. Vejam aqui todos os textos deste desafio de escrita dos blogues do SAPO.

Aqueles pássaros não se calam

06.12.19 | Alice Barcellos

A cela era um cubículo sombrio e imundo no qual nenhum ser ou coisa deveria estar. No entanto, lá estava ele. Ora nu, ora em farrapos, era para ali atirado como um saco de lixo, depois dos intermináveis interrogatórios. Isso para não falar na tortura. Algo que nunca nenhum ser ou coisa deveria suportar. E, no entanto, ele suportava.

Já não sabia há quanto tempo estava naquele inferno, o dia da semana, as horas. Pelos seus cálculos difusos, prejudicados pela fome, pelo sono e pela falta de sanidade mental, julgava ser dezembro.

Os seus dias eram medidos a toque do medo e dos sons que ouvia na prisão. As chaves a tilintar no bolso dos seus algozes, os passos pesados das botas de biqueira de aço, os gritos desesperados dos outros prisioneiros, a pancada seca do bastão nas costas ou na cabeça. Desmaiava e era despertado com baldes de água fria e choques. Mais uma vez, era atirado ao lixo.

O calor aumentava na mesma proporção do desespero. Era dezembro, só podia ser. Dezembro dos mergulhos no mar, do futebol em Ipanema e dos dias de praia intermináveis. Da cerveja gelada e do samba com os amigos até ao amanhecer. Dezembro de festa e de fim de ciclo. Seria este o seu último mês de dezembro? Teria de pagar com a própria vida só porque pensava diferente e ousara lutar pelas suas ideias? Não, respondia para si mesmo. Dezembro teria de ser também de resistência.

Na cela, havia uma minúscula janela, quadrado fechado com barras de ferro, de onde conseguia ver uma nesga de céu. Era a única ligação que estabelecia com o mundo lá fora. O céu e o canto dos pássaros. Na alvorada, quando a prisão estava silenciosa, ele ouvia o alvoroço dos pássaros que por ali viviam. Por momentos, concentrava-se nisso. No canto do sabiá, do sanhaço, do joão-de-barro. Do bem-te-vi. Ah, o canto do bem-te-vi encerrava nele uma esperança sem explicação.

Aqueles pássaros não se calam, pensava. Por favor, pássaros, nunca se calem, suplicava. Enquanto houver pássaros a cantar, haverá resistência.

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Texto escrito no âmbito do Desafio dos Pássaros.

Tema da semana: Aqueles pássaros não se calam. Vejam aqui todos os textos deste desafio de escrita dos blogues do SAPO.

Imagem: Pixabay