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Diário de fuga

Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

Diário de fuga

Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

Desafio de Escrita dos Pássaros #2.5: Carta de Alepo

28.02.20 | Alice Barcellos

Abri os olhos, lentamente, para mais um despertar. Pelas frestas da janela, vi que estava sol, os pássaros chilreavam no jardim. Deixei-te a dormir e levantei-me sorrateiramente, depois de dar-te um beijo silencioso na boca. Abri a porta da cozinha aos cães que me deram o seu "bom dia" efusivo, entre saltinhos e lambidelas, contribuindo, ainda mais, para uma manhã que já se avizinhava perfeita.

Fiz um café forte, vi as notícias no telemóvel e liguei aos meus pais. Falamos, longamente, comentando como o verão estava a ser claro e luminoso. Espreguicei-me na cadeira da cozinha e segui até ao jardim, onde as flores tinham voltado a aparecer. Os primeiros limões começavam a crescer, amarelos, no limoeiro que o meu avô tinha ali plantado.

Calcei-me e segui caminho até à biblioteca para requisitar um livro de poesia. Sim, apetecia-me ler poesia e regressar aos grandes poetas da Antiguidade. Vestia o meu leve vestido floral e calçava umas sandálias gastas de couro. Para afugentar o calor, prendi o cabelo num rabo-de-cavalo que balançava ao ritmo dos meus passos apressados. Já não precisava andar com panos a tapar-me, o que era um grande alívio nos dias quentes de verão. As crianças brincavam nas ruas e o souq começava a ganhar vida com os pregões dos vendedores.

Entrei na biblioteca e respirei o silêncio denso que encerra séculos de saber, entre as grandes prateleiras recheadas de livros. Até que ouvi um grande estrondo, boom, e aninhei-me num canto, assustada.

Abri os olhos, rapidamente, para mais um dia, que pode ser o último para alguém por aqui. Acordei estremecida com mais um bombardeamento. Nunca me vou conseguir habituar ao barulho das bombas e ao tremor de terra que elas provocam. Por instantes, sorri, quando me lembrei que tinha sonhado que estávamos em paz e que saía de casa para um passeio até à biblioteca, num típico dia de verão. Ainda dormias ao meu lado e o nosso jardim tinha flores. Os meus pais estavam vivos e as crianças brincavam nas ruas. A biblioteca ainda estava de pé.

Será que um dia a guerra acaba? Escrevo-te esta carta sem saber se vai chegar ao destino final. Espero, em breve, conseguir fugir daqui e juntar-me a ti do outro lado da fronteira. Não sei o que me espera, mas será melhor do que ver todos os dias tanta destruição e morte. Ao menos, o nosso limoeiro continua plantado no jardim. Só espero que não seja o único a resistir.

Um abraço apertado da tua Láyla

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Imagem: Jan Kaluza / Unsplash

Texto escrito no âmbito do Desafio dos Pássaros.

Tema da semana: Acordas e tudo o que mais desejavas realizou-se: conta-nos o teu dia. Vejam aqui todos os textos deste desafio de escrita dos blogues do SAPO. 

P.s.: Tem sido assim desde que comecei com esta "brincadeira" do Desafio dos Pássaros. Passo a semana toda a pensar no que posso escrever, às vezes faço-o logo na segunda, outras só na quinta. Depende dos temas e da inspiração do dia. Sobre este tema quase que escrevi um texto pessoal, a falar dos meus desejos e do que seria um dia perfeito para mim. Refleti sobre os meus sonhos e cheguei à conclusão de que estou a lutar por eles. Alguns já se realizaram, outros estão em construção e outros são apenas projetos. Senti-me privilegiada por ter as "ferramentas" necessárias para batalhar pelos meus sonhos e lembrei-me daqueles que não têm. Daqueles a quem as circunstâncias da vida cortaram as hipóteses de batalhar pelos seus sonhos em paz. Assim saiu-me esta "Carta de Alepo".

Desafio de Escrita dos Pássaros #2.4: Errar é humano

21.02.20 | Alice Barcellos

Iniciava-se mais uma aula de história, os alunos consultavam os seus hologramas interativos, enquanto a professora tentava controlar a agitação da turma.

- Atenção, meninos, acabou-se a confusão. Vamos lá começar a aula! – exclamou Maria Augusta, do alto dos seus 60 anos, enquanto apontava na agenda o tema da aula. "Já estamos a 20 de fevereiro de 2030, como este mês passou rápido", pensava, enquanto escrevia com uma caligrafia cuidada.

Era uma mulher madura, inteligente, que adorava o que fazia, embora houvesse dias em que se sentia quase vencida pelo ritmo acelerado com o qual os miúdos chegavam às aulas.

Tinha saudades da época em que se ensinava ao ritmo do giz a traçar as letras no quadro negro e do folhear das páginas dos livros. Havia mais tempo para pensar.

Olhava para aquelas crianças e sabia que elas nunca iriam conhecer o mundo a.G. – antes do Google –, como ela costumava dizer, em tom de brincadeira, embora os miúdos nunca apanhassem o sentido da expressão.

Como ensinar história numa época em que o passado não era valorizado, tampouco conhecido? Como explicar o peso dos acontecimentos a miúdos que só se preocupavam com as reações geradas nas redes sociais e as polémicas que circulavam à velocidade da luz na internet? Não era fácil, mas ela não ia desistir. Não queria que a História entrasse para o rol das disciplinas extintas, como já havia acontecido com a Filosofia ou com o Latim.

Estavam a falar sobre a Revolução Industrial e a professora pediu aos alunos para mostrarem imagens de ícones da época. João foi o primeiro a projetar a sua imagem, seguindo-se da explicação:

- A Torre Eiffel em Paris simboliza a era industrial.

No momento em que a imagem foi projetada, Maria Augusta teve a certeza de que aquela não era a Torre Eiffel.

- Um bom exemplo, João. No entanto, a tua pesquisa está errada. A imagem apresentada não corresponde à verdadeira torre – disse a professora.

- Como assim? É o resultado da pesquisa do Google, não é possível estar errado! – respondeu João, indignado.

O burburinho começou a crescer na turma. Os miúdos não acreditavam como o Google poderia ter errado.

A professora, apaziguadora, disse que a imagem em questão era de uma réplica da Torre Eiffel construída em Paris, Texas, nos Estados Unidos. Portanto, a máquina não estava, de todo, errada, mas o João, sim, pois não fez a pesquisa com atenção. Para chamar os miúdos à terra, puxou do seu bom e velho Atlas Histórico e saltou até ao capítulo da Revolução Industrial. Ver livros em papel era uma raridade e, para as crianças, era um objeto que surpreendia. Parece que só de sentir o cheiro e o peso dos livros já ficavam mais calmas.

- Meninos, venham cá e vejam.

Naquele instante, as crianças esqueciam os aparelhos eletrónicos e as pesquisas feitas à pressa, só observando a forma compenetrada como a professora contava aquela história. Um momento sublime que fazia Maria Augusta ganhar um novo ânimo para não desistir da sua missão neste mundo.

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Imagem: João Silas / Unsplash

Texto escrito no âmbito do Desafio dos Pássaros.

Tema da semana: O Google está errado. Vejam aqui todos os textos deste desafio de escrita dos blogues do SAPO. 

Desalinho

18.02.20 | Alice Barcellos

Podemos escrever uma história de amor
Com apenas uma linha?
Que disparate, respondias sempre
que eu te fazia esta questão

Desalinhada, deixavas-me assim
sem chão e eu a tentar
equilibrar-me numa linha

Sabes aquelas pessoas que fazem vida
em cima de linhas finas, lá no alto?
Eu sentia-me assim ao teu lado
Mas não tinha a segurança dos equilibristas
Tentava, mas andava ali aos saltos
Para que me visses mais um bocado
Para que gostasses mais de mim
Alguma vez gostaste?

Desisti de viver na linha
Assumi o desalinho
Descabelada, assim me deixaste
Quando a porta fechaste
E seguiste o teu caminho

Respirei fundo e apanhei o cabelo
Num puxo bem alto e redondo
Como aqueles das bailarinas, sabes?
Deixei para trás a linha
E calcei as sapatilhas
Agora ando em pontas
O chão duro debaixo dos pés
Calejado, meu coração ainda insiste
Na mesma questão:

É possível escrever uma história de amor
Com apenas uma linha?
Pode até ser implicância minha
Mas não seria demais pedir algo como
Bom dia, meu amor, fiz café
Hoje venho mais cedo pra casa
Vamos viajar juntos?
Gosto tanto do teu cheiro
Quero viver no teu abraço
As noites ao teu lado são melhores
Amo-te muito

Vês, não é assim tão difícil, pois não?
Quando o amor acontece
Encontramos sempre as palavras certas

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Imagem: Wild Eucalypt / Unsplash

Espreitem aqui para doses de inspiração diária :)

Desafio de Escrita dos Pássaros #2.3: Conversa de anjo

14.02.20 | Alice Barcellos

O rapaz estava sentado com tanta leveza que parecia equilibrar-se numa nuvem. Lia um livro atentamente. Por vezes, soprava um caracol mais rebelde que teimava em ir meter-se à frente dos olhos. Nem sentiu a chegada do amigo, que, de tão silencioso, parecia que vinha a voar.

- Olá, Dani! O que andas a ler? – perguntou o amigo, sentando-se ao seu lado.

- Salve, Rafa. Ainda não sabes? É a versão atualizada do manual que está ser distribuída.

- Já? Pensava que era só no meio do ano...

- Também eu, mas eles aproveitaram o facto de ser o mês de São Valentim. Hoje em dia, tudo é pretexto para o marketing...

- Está bem. E então, alguma novidade a assinalar?

- Sim! Para começar, voltaram a dar importância ao amor platónico. Lá em baixo, chamam agora de crush. Para entrarmos em ação, é preciso haver aquela ligação de almas, aquele brilho nos olhos. Bem sabes que isso de gostar de alguém tem muito mais a ver com o interior do que com o exterior.

- Faz sentido.

- Depois, temos de estar atentos a qualquer contacto físico não autorizado por alguma das partes e entrar logo em ação, protegendo a pessoa que foi desrespeitada e rezando para que ela desista daquela relação.

- Concordo, chega de abusos!

- De resto, chama a atenção para a redução de postos de trabalho na nossa área, uma vez que lá em baixo usam outras ferramentas para se aproximarem uns dos outros e passam cada vez mais tempo agarrados aos ecrãs, o que dificulta o nosso trabalho de campo.

- Pois...

- Podes ficar com o meu livro. Acho que já dei conta de me atualizar.

Daniel levantou-se da nuvem, enquanto deixava o livro pousado no colo de Rafael. Na capa cor-de-rosa podia ler-se em letras douradas: “Manual para iniciar relacionamentos para cupidos do século XXI”.

- Rafa, só mais uma coisa. Vamos deixar de atirar setas. É um objeto muito Idade Média. Vamos passar a atirar aviões de papel.

- Mas e o ambiente?

- Não te preocupes, é papel reciclado e podes aproveitar para escrever um poema de amor. Ajuda sempre.

- Já estás a inventar. Ainda és despromovido. Vê lá se não te cortam as asas.

- Não stresses, já apresentei esta ideia ao nosso querubim superior e ele adorou.

- Ah, é bom saber que os humanos ainda acreditam em poemas de amor.

- Sim, há coisas que nunca mudam e ainda bem.

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Imagem: Detalhe da Sistine Madonna de Rafael

Texto escrito no âmbito do Desafio dos Pássaros.

Tema da semana: Manual para iniciar relacionamentos. Vejam aqui todos os textos deste desafio de escrita dos blogues do SAPO. 

Vamos falar sobre a eutanásia? Vamos falar sobre a valorização da vida?

12.02.20 | Alice Barcellos

No dia em que pensava se ia ou não escrever alguma coisa sobre a eutanásia, vi a notícia de que um homem de 65 anos morreu depois de ficar seis horas à espera de assistência médica nas urgências do Hospital de Lamego. Acontece com alguma frequência e faz sempre refletir sobre a forma como somos tratados quando mais precisamos.

O que é que isso tem a ver com a eutanásia? Quase tudo. Não sei o que é sofrer de uma doença terminal, dores insuportáveis, estar numa cama em estado vegetal, depender na totalidade de outras pessoas. Compreendo que para estes casos o enquadramento legal da morte assistida faça sentido, sendo por isso a favor da eutanásia. Contudo, a vida humana é valiosa e deve ser valorizada. A oportunidade de viver é o bem mais valioso que temos, mesmo que na maior parte do tempo não estejamos a pensar nisso.

Quem decide se uma pessoa deve continuar ou não? Ela própria, em primeiro lugar. Mas a decisão pessoal terá de ser sempre assistida por uma equipa médica, quando a eutanásia é legalizada. A discussão da proposta de legalização envolve vários fatores, é um processo complexo e aconselho a consulta deste artigo aqui para compreender o que está em cima da mesa.

No meio de todo o debate, a questão que queria deixar é: será que não é cedo para legalizar a eutanásia em Portugal? Mesmo sabendo que a proposta não é nova, ainda há um longo caminho pela frente na valorização da vida, principalmente quando ela começa a caminhar para a sua fase final, e nos cuidados paliativos.

Além disso, o mais importante neste momento seria existir um maior investimento no Sistema Nacional de Saúde para evitar notícias tristes como a que comecei por citar no início deste texto. É preciso garantir um fim de vida digno para todos, qualquer que seja a decisão final de cada um.

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Imagem: Daan Stevens / Unsplash

* Texto atualizado a 14-02-20

Sintam-se à vontade para deixar as vossas opiniões nos comentários

Poemas de amor

11.02.20 | Alice Barcellos

Gosto de escrever

Poemas de amor

Sentir aquela dor

dos corações partidos

Mesmo que o meu esteja em paz

Sem conflitos

É sempre bonito passar pelo

que o outro passou

Imaginar o que tanto o destroçou

E tentar com versos sentidos

Colar um pedacinho

de um coração sofrido

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Imagem: DESIGNECOLOGIST / Unsplash

O meu Diário de Fuga agora também tem Instagram. Todos os dias razões para: sonhar, amar, viajar e sorrir. Vejam aqui

Desafio de Escrita dos Pássaros #2.2: Laís e Marta

07.02.20 | Alice Barcellos

O armário de medicamentos de Laís mete inveja a qualquer farmácia. Ela adora arrumar os compartimentos. Ver se falta algum item ao setor dos primeiros socorros, se os comprimidos estão na data de validade, se ainda há anti-inflamatórios. “Não passo sem estes aqui”, diz-me, enquanto separa as cartelas de medicamentos com as pontas dos dedos delicados, unhas curtas, mãos impecavelmente limpas.

Laís é aquela pessoa que tem sempre um comprimido na bolsa para desenrascar uma amiga com dores de cabeça ou cólicas. Apesar de disfarçar, vejo nos seus olhos a satisfação de ir buscar a pastilha ao seu nécessaire, que vai com ela para todo o lado, e entregá-la à amiga, acompanhada de um comentário sobre o suposto problema de saúde. “Joana, tens de ver estas dores de cabeça, li que podem ser sintoma de alguma doença grave, um tumor ou um aneurisma”, diz, com ar de sabichona, a olhar por cima dos óculos.

As amigas riem dos seus diagnósticos. “Ai sim, Laís, foste consultar-te com o Doutor Google?”, pergunta Joana. E Laís responde. “Sim, eu informo-me antes de ir a correr ao centro de saúde. Informação é poder. Bem sei o que já passei nas mãos de médicos, com aquele olhar de desdém, nunca nos dão uma explicação razoável dos nossos problemas e nos mandam para a casa com o tratamento menos indicado. Não, minhas amigas, isso de médicos, nunca fiando. Confio mais no Doutor Google...”

Há dias que não a vejo e sinto um aperto no peito. Tenho tentado tirá-la de casa, mas sem sucesso. “Laís, anda dar uma caminhada à beira mar, estão temperaturas de primavera”, escrevi na última mensagem que lhe mandei no domingo. Sei que ficar fechada em casa só vai piorar a sua doença, nunca assumida, mas tolerada por todos. Também eu já fui perguntar ao Doutor Google o que era hipocondria e o que poderia fazer para ajudá-la. Mas Laís não quer ser ajudada. Eu que gosto tanto daqueles olhos verdes e consigo ver a mulher linda, além daquela paranoia toda. Queria tanto ajudá-la. É frustrante. Ao menos, vai respondendo às mensagens.

“Marta, já viste a epidemia que por aí anda? Sair de casa só para o estritamente necessário. Vê lá se compras uma máscara e evitas andar de transportes públicos. Ah, e faz reforço do sistema imunitário com aqueles suplementos que te dei. Cuida-te, querida. Beijinhos, Laís”.

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Imagem: Pixabay

Texto escrito no âmbito do Desafio dos Pássaros.

Tema da semana: É isso de médicos, nunca fiando. Vejam aqui todos os textos deste desafio de escrita dos blogues do SAPO. 

Risco

04.02.20 | Alice Barcellos

Tentamos sempre não cair

Viver com os pés no chão e a cabeça levantada

Passamos a vida a driblar rasteiras

Temos medo do risco, este risco traçado em giz

no quadro negro dos anos

Escrevemos uma lista das nossas vitórias

e das quedas que não demos

Vamos andando por este caminho sem sombras

Temos medo de percorrer o caminho ao lado

Que tem pedras, espinhos e lama

Tem precipícios de inseguranças e lagos escuros de receios

Construímos a nossa história no caminho plano,

sem quedas nem percalços,

cortado pelo risco que nos separa do medo

A linha é ténue e facilmente quebrável

como um risco de giz que apagamos com as mãos

Quando damos por ela, estamos no chão

Pés para o ar e cabeça enfiada na lama,

mergulhada em águas turvas

Nadamos até à superfície da rotina

para que tudo volte a ser como antes

Mas não volta

O traço é cada vez mais fino,

o risco é cada vez maior

Não há como traçar uma barreira que nos impeça de cair

O importante é saber levantar e ter forças

para continuar

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Foto: Aleks Dahlberg / Unsplash