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Diário de fuga

Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

Diário de fuga

Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

Vou ali e já venho

21.05.20 | Alice Barcellos

Miyuki levantou-se cedo naquele dia fresco de início de primavera. Ao longe, ouvia-se o canto dos rouxinóis e ela podia sentir o perfume das cerejeiras em flor a entrar pelas janelas do apartamento. Ligou o computador e esteve a apreciar a câmara que mostrava a sakura em direto, ansiando pelo dia em que também ela poderia ir percorrer os parques da cidade em liberdade, quem sabe de mãos dadas com um namorado. Este dia parecia cada vez mais distante.

Miu, como a mãe carinhosamente lhe chamava, guardava as memórias do tempo em que não viviam confinadas. Quando ia com mãe todos os dias ao parque depois da escola e comia um daqueles gelados de morango num cone de Hello Kitty, que ela adorava.

Há anos que só podiam sair de casa para o essencial e de acordo com as instruções dadas pelas autoridades. No início chamaram de nova normalidade. Agora, era uma forma de vida. “As pessoas habituam-se a tudo”, dizia-lhe a mãe, conformada, enquanto, sentada no sofá, via televisão e afagava o pelo da gata. Aiko era a companheira de todos os dias, que mantinha a liberdade no olhar, mesmo só tendo conhecido as quatro paredes do pequeno apartamento.

Miyuki também mantinha a liberdade no olhar, apesar de já não se lembrar exatamente qual era o seu sabor. Queria viajar, sair do Japão, conhecer outros países e continentes. Queria encontrar pessoas, trocar abraços e beijos. Dançar descalça numa praia até ao dia amanhecer.

E, naquela manhã de início de primavera, depois de ter colocado o seu conjunto cor-de-rosa por baixo do largo fato de treino preto, foi com estas ideias que Miu saiu de casa. Já levava a música na cabeça e os passos ensaiados nos pés. Vestiu o carapuço e saiu do apartamento silenciosamente. Despediu-se de Aiko, que zelava pelo sono da mãe. “Vou ali e já venho”, sussurrou à gata.

Calçou os ténis e começou a descer os onze lances de escadas com a destreza habitual. O ar fresco da manhã deixou-lhe com os olhos molhados e uma lágrima escorreu pela face branca até desaparecer na máscara preta, que lhe tapava metade da cara.

Miu, com passos decididos, caminhava quase transparente entre os prédios da cidade que amanhecia devagar. Naquele momento, lembrou-se do sabor da liberdade. Sabia a gelado de morango. E ela queria muito voltar a comer um.

Esta história começou aqui. Próximos episódios em breve...

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Imagem: Deak Adorjan / Unsplash

Texto escrito no âmbito do Desafio dos Pássaros.

Tema da semana: Vou ali e já venho. Sigam aqui o blogue dos Pássaros para saberem tudo sobre os desafios de escrita.

"Minha pátria é a língua portuguesa"

05.05.20 | Alice Barcellos

Quando aterrei pela primeira vez no aeroporto de Lisboa, já lá vão 20 anos, lembro-me que fazia calor e ventava num dia quente de agosto. Era menor de idade e era a primeira vez que viajava de avião, mas não senti medo nem desconforto. Fiz "amizade" com dois miúdos que viajavam também sozinhos, brasileiros, a irmã mais velha e o irmão mais novo. Passei grande parte da viagem a conversar com a irmã mais velha. Já não me lembro sobre o quê e como ela se chamava, mas lembro da sensação boa que é poder ter alguém para trocar algumas palavras num momento em que nos sentimos sozinhos.

É sempre bom ter alguém ao nosso lado que fala a mesma língua. Mesmo hoje, tendo já algumas viagens na bagagem, viro sempre o pescoço quando ouço alguém a falar português num país estrangeiro. Creio que esta seja uma característica do ser humano. Sentimo-nos mais perto de casa quando ouvimos a nossa língua.

Voltando a Lisboa. Quando, finalmente, desembarcamos, uma comissária de bordo dirigiu-me a palavra em português de Portugal. Foi a primeira vez que alguém falou comigo com este sotaque, naquela altura, totalmente desconhecido aos meus ouvidos. Lembro-me que aquelas palavras entraram sem sentido em mim. Tive de pedir à comissária para repetir. Mais uma vez, a borracha do tempo tratou de apagar o conteúdo da conversa, mas creio que estivesse relacionado com o facto de eu ir fazer ou não escala.

Não, ficaria por Lisboa. A minha mãe estava à minha espera, debruçada naquela grade que separa a parte restrita das chegadas e que temos de contornar quando chegamos aos aeroportos - quase sempre à procura de um rosto familiar do outro lado. Ali, naquele dia quente de agosto, eu vi o rosto aconchegante da minha mãe.

Chegar num país estrangeiro aos 13 anos não foi fácil, mas o facto de já ter raízes familiares ajudou no processo. Isso e a língua. Não que tenha sido amor à primeira palavra. Houve uma estranheza inicial, como que o cérebro a pedir ao ouvido para afinar a frequência para aquela forma de falar. Os portugueses, habituados às novelas ou à música do Brasil, compreendem melhor o sotaque brasileiro, já nós, brasileiros, nem sempre conseguimos apanhar à primeira o sotaque português. É claro que bastam alguns minutos de conversa para esta sensação dissipar-se na troca de palavras. Afinal, falamos a mesma língua.

Desde que vivo em Portugal já viajei um tanto por este país tão bonito e rico em sotaques. Eu adoro afinar a audição e saborear os sotaques dos lugares que vou.Talvez tenha sido por isso que comecei a falar com sotaque de Portugal com tanta naturalidade, uma vez que conheço pessoas do Brasil que vivem cá também há muitos anos e não conseguem "trocar" tão facilmente de sotaques.

Acho incrível que, com poucos quilómetros de distância, seja possível encontrar sotaques tão diferentes. Formas de falar que carregam em si a ancestralidade cultural e histórica dos lugares por onde passamos. Quase sempre compreendi os sotaques das diferentes partes de Portugal em que estive, do Minho ao Algarve, de Trás-os-Montes ao Alentejo.

A única vez que me causou aquela estranheza familiar (parecida com o dia em que aterrei em Lisboa) foi em São Miguel, Açores, quando pedi uma informação a uma mulher que circulava em Vila Franca. Pedimos indicações de um lugar para comer, um restaurante para irmos almoçar. Confesso que arrancamos o carro sem perceber o lugar que a senhora nos tinha indicado. Depois, mais tarde, a conversar com o casal do alojamento onde ficamos, foi-nos explicado um pouco das origens do sotaque de São Miguel e da influência do francês. Fez todo o sentido.

Hoje, quando falo, o meu sotaque não denuncia onde nasci, mas quando cá cheguei a doçura do meu "carioquês" fazia com que qualquer pessoa soubesse de onde eu vinha. Ainda hoje falo "carioquês" com a minha mãe, a minha família e quando estou no Rio de Janeiro, claro. Mas quando estou com a família do lado de cá, é o português de Portugal que me sai, naturalmente, e quem me ouve diz que tenho um leve sotaque do Porto. E ainda bem, gosto que saibam de onde venho, mesmo que seja apenas uma parte da minha história.

Tenho dois países que posso chamar de "casa", dois passaportes e dois bilhetes de identidade. Mas a minha pátria é só uma. Como tão bem escreveu o nosso poeta maior, a "minha pátria é a língua portuguesa". Com qualquer sotaque, terei sempre orgulho em falar esta língua tão bonita e rica.

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Imagem: Os bonitos guarda-chuvas de Águeda. Ricardo Resende / Unsplash