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Diário de fuga

Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

Diário de fuga

Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

A aula de dança

10.07.20 | Alice Barcellos

Miyuki fazia sempre o mesmo caminho até aos antigos armazéns onde tinha sentido o gosto da liberdade e experienciado a esperança em forma de abraço. Desde aquele dia não conseguia manter-se muito longe do lugar que guardava, ao mesmo tempo, tantas sombras e luz. A sensação de que estava a cometer algo proibido deixava-lhe sempre com um fundo de medo no olhar. Um ruído fora do normal, uma porta a bater, tudo era pretexto para imaginar que iriam ser apanhados e presos.

O medo dava-lhe voltas à barriga desde que saía de casa e tentava ser o mais transparente possível durante o percurso até que se sentisse segura nos braços do seu par. Aí, depois de se ter libertado das roupas largas, a música começava a tocar em alto volume e apagava o medo do fundo dos seus olhos. Aí, eram só dois corpos a dançar.

Até então, Miu nunca tinha pensado que iria sentir tanta liberdade em mover o corpo, em dançar ao ritmo da música. Vivera durante muitos anos sob a opressão do confinamento, em que as pessoas já quase não se tocavam, mantinham a distância obrigatória, viviam para os seus trabalhos e famílias, não se olhavam nos olhos e não se viam a sorrir, pois estavam sempre de máscara. Sair de casa era só para o necessário e tudo o resto era intermediado pelos muitos ecrãs que tomaram conta do quotidiano. Primeiro, as pessoas viviam com medo do vírus, depois, quando o vírus já parecia uma ameaça irreal que se acompanhava pelas notícias e pelos números astronómicos de infetados e mortos, as pessoas começaram a ter medo da opressão das autoridades que castigavam quem não cumprisse as regras.

O pai de Miyuki tinha sido um resistente que ousou ir contra ao poder estabelecido. Acreditava que havia outro caminho, que era possível encontrar uma cura para o vírus e para a opressão, para que todos pudessem viver em liberdade outra vez. Miu ainda guardava o último beijo de despedida que o pai lhe deu na testa naquele dia que saiu de casa e nunca mais voltou.

A mãe conformou-se com o desaparecimento do pai mas a filha não. Jurou que iria descobrir onde ele estava nem que tivesse de seguir o mesmo caminho. Iria lutar contra o medo. Encontrou no computador do pai um endereço numa mensagem anónima. Foi aí que descobriu a Sociedade Secreta da Esperança. Foi lá que sentiu o calor de um abraço e que começou a frequentar as aulas de dança. Era para lá que fugia nas manhãs frias.

Mas, naquela manhã de início de primavera, Miu não se deu conta dos passos atrás de si. O hábito faz-nos baixar a guarda e a rapariga não reparou que estava a ser seguida. Chegou ao antigo armazém. Não notou que a sombra ficara do lado de fora a observar o lugar e a tirar fotografias. O homem, magro, escondia-se atrás das árvores que cresciam num terreno baldio. Quando o portão abriu, Miu ainda olhou para trás, pois pareceu ter ouvido passos ao redor. Não viu nada. "É só o medo a criar sons onde eles não existem", pensou. Passou pelo porteiro anónimo e dirigiu-se para a aula de dança. Já estava atrasada e sabia que Ichiro destava atrasos.

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Imagem: Leon Liu/Unsplash