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Diário de fuga

Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

Diário de fuga

Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

Alvão: um segredo escondido entre as montanhas

30.08.20 | Alice Barcellos

A sensação de isolamento e paz que se encontra ao percorrer os caminhos do Parque Natural do Alvão era tudo o que precisávamos na primeira viagem pós-confinamento.

Finalmente, vamos sair. Não sair para ir trabalhar, ir às compras, visitar a mãe ou ir à praia. Vamos pôr as malas no carro e conhecer um lugar novo. Um sábio falou que devíamos ir, pelo menos, uma vez por ano a um sítio que nunca fomos. Que nunca vimos com os nossos olhos e nunca pisamos com os nossos pés – descalços, de preferência.

A magia de pensar assim não está em fazer grandes viagens e ir a lugares longínquos, esses podem esperar; a magia de pensar assim está em procurar dentro do nosso país, às vezes até dentro da nossa própria cidade, locais para nós desconhecidos.

Assim, com essa magia que se transforma em borboletas no estômago, chegamos ao Alvão. Numa segunda-feira quente de julho. Alerta máximo de incêndio. Curvas, subidas e descidas, o Google Maps manda-nos por um estradão de terra cheio de buracos que nos iria levar ao nosso alojamento para os próximos dias. Quase a chegar, paramos o carro. Quer dizer, fomos obrigados a parar por uma manada de vacas maronesas que, durante alguns minutos, não se mexeu. Elas curiosas a olhar para nós e nós, com um tiquinho de medo, a olhar para elas. Que bela receção!

Finalmente, entramos na Quinta da Baldieira e instalamo-nos na nossa casinha de pedra com vista para as montanhas e para o Santuário de Nossa Senhora da Graça. A quinta é um agroturismo ideal para fugir de tudo. As poucas casas de pedra estão recuperadas com todas as comodidades necessárias, têm um encantador jardim, com churrasqueira e, cereja no topo do bolo, uma piscina privada – ideia levada a cabo para evitar contactos durante a pandemia. Aprovada!

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Com um ambiente tão acolhedor não apetecia sair dali. Mas as montanhas chamavam por nós e, no dia seguinte, lá fomos percorrer os caminhos do Parque Natural do Alvão.

Ponham uma estrada na vossa lista: Nacional 304. Percorram-na numa dia de sol, algumas nuvens, uma brisa indolente e depois digam-me o que acharam. Ah, vidros abertos, se faz favor. Eu fiquei com a ideia de que, afinal, não precisamos fazer muitos quilómetros para nos sentirmos longe de tudo. Além de a ter considerado uma das estradas mais belas que já percorri.

Até que se chega ao miradouro das Fisgas de Ermelo e a visão tenta abarcar tudo, enquanto o corpo sente o arrepio das vertigens – um “misto de espanto e terror”*.

O rio Olo escorrega pela montanha, quebrando a dureza da rocha. Ali convivem pacificamente o granito e o xisto. Milhões de anos de história geológica escrita naqueles quartzitos – 480 milhões de anos para ser mais precisa. Mais um monumento natural único que podemos apreciar em Portugal.

Acabamos o dia com um mergulho refrescante na lagoa profunda das piocas de baixo. As de cima ficarão para uma próxima visita.

As piocas são as piscinas naturais formadas pela queda de água das Fisgas de Ermelo. O acesso às de baixo é bastante simples. Estaciona-se o carro junto à estrada e depois são cerca de 1,5 quilómetros a caminhar, sempre a descer, até chegar junto ao rio Olo que corre sossegado, rodeado de árvores. Mais uns passos e deparamo-nos com algumas quedas de águas e uma sequência de lagoas. Um lugar de natureza em estado bruto em que quase nos sentimos intrusos. Mas, após um mergulho, a comunhão é total.

O segredo, afinal, não estava escondido entre as montanhas. Estava só à espera de ser descoberto.2.jpg

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*Ermelo, Marão, 2 de Outubro de 1959

"Cá me vim debruçar também sobre o despenhadeiro das Fisgas, com os pés seguros pelos companheiros por causa das vertigens. E apreciei devidamente este misto de espanto e terror. A contemplação dos abismos naturais é necessária de vez em quando a quem tem a atracção dos outros. Toma-se consciência, com rigor físico, das asas que nos faltam para estar à altura da máxima de Nietzsche…"

Miguel Torga, Diário VIII (1959)

Uma dívida impagável

22.08.20 | Alice Barcellos

De todas as dívidas que contraímos ou vamos contrair ao longo das nossas vidas, há uma que nunca vamos conseguir pagar.

Dívidas. Uma palavra que causa suores frios a muitas pessoas. Ninguém gosta de as ter mas quase todos têm de as contrair. Quer seja para comprar carro, casa, ir de férias, quer seja para salvar economias, bancos, empresas, a verdade é que a nossa sociedade capitalista tem pés de barro, assentes em dívidas.

Regra geral, quem contrai uma dívida quer pagá-la o mais rápido possível. E uma dívida nunca vem só, há os juros, as taxas e taxinhas que andam à volta dela, como aqueles peixes pequeninos andam à volta dos tubarões.

Nem sempre as vemos ou pensamos sobre elas, seguimos as nossas vidas com mais ou menos tranquilidade até chegar a próxima prestação. Podemos não pensar sempre nas dívidas, mas não negamos que elas existem e que as temos de pagar.

Ao contrário da crise climática. A maioria das pessoas vive em negação. “O mundo ainda está em negação da crise climática”, afirmou Greta Thunberg esta semana, quando se assinalaram dois anos que a jovem ativista sueca começou com o movimento de greve climática às aulas.

Nestes dois anos, o mundo assistiu a grandes mudanças e ao agravamento de várias tensões sociais, raciais e políticas. Não se chegou a nenhum acordo sério para mudarmos a nossa forma de viver acima das possibilidades daquilo que o planeta nos dá. Uma nova pandemia global começou. O mundo, finalmente, abrandou o ritmo. Houve quem romantizasse que o planeta estivesse a curar-se, que a natureza estivesse a tomar o seu lugar, que nada mais iria ser como era antes.

Nada mudou para melhor, só para pior. Além de estarem a morrer pessoas todos os dias de COVID-19, a pandemia está a agudizar as desigualdades sociais. Nos lugares onde a pandemia dá sinais de abrandamento tudo está como antes – poluir e consumir como se não houvesse amanhã.

O planeta não se vai curar com míseros meses em que os humanos estiveram “enjaulados” depois de tantos anos a explorar os seus recursos até ao tutano. Há danos que já são irreversíveis e esta é a dívida que nunca iremos conseguir pagar. Há espécies extintas que nunca mais voltarão a existir, territórios que estão a desaparecer debaixo d’água, oceanos a transformarem-se em mares de plástico, desertos a nascer e paraísos de gelo intocados a derreter.

Os negacionistas desta crise dirão: “ah, que exagero, estas mudanças fazem parte do planeta.” “O aquecimento global não existe”, vão escrever no Twitter, motivados por um líder qualquer que costuma escrever esta e outras barbaridades nas redes sociais.

Sim, é verdade, o mundo está a mudar. Mas todos os anos, desde que me lembro, leio sempre a mesma notícia: o homem esgotou os recursos naturais da Terra e vai viver em dívida com o planeta. Este ano, é a partir de hoje. Até quando vamos (sobre)viver assim?

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Imagem: Silas Hao / Unsplash