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Diário de fuga

Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

Diário de fuga

Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

As cartas do meu avô

30.10.20 | Alice Barcellos

Já não recebo mais cartas tuas, avô, e creio que na época não dei o devido valor à relíquia que me chegava, de quando em quando, na caixa de correio. Naquele tempo medíamos o tempo de forma diferente. No compasso de espera de uma carta. Nos números do teclado duro da cabine telefónica que usávamos para fazer chamadas internacionais.

Quando nos mudamos para Portugal, eu e minha mãe não tínhamos computador em casa. Íamos ao Centro Multimeios de Espinho e subíamos ao último piso, onde existia uma sala de computadores para uso do público. Só tínhamos de dar o nome e ganhávamos uma hora para estar ali a navegar pela web. Uma hora era o suficiente para ver os e-mails e fazer alguma pesquisa para a escola. Não havia interesse em estar ali mais tempo. É, olhando agora para trás, medíamos mesmo o tempo de forma diferente.

O hábito de enviar cartas foi deixando de existir, mas o meu avô manteve-o quase até o fim. Elas chegavam em envelopes de papel pardo e só de olhar para a sua caligrafia, já um pouco tremida, reconhecia logo o remetente. Dentro do envelope havia sempre uma carta a contar as últimas novidades da família do lado de lá do Atlântico e recortes de jornais. O meu avô lia o jornal todos os dias, de cabo a rabo, nada lhe escapava. Enviava-me artigos de opinião, principalmente, e reportagens. Na época, eu já sabia que queria seguir jornalismo e, desde então, o meu avô escrevia sempre nos envelopes “À Jornalista Alice Barroso Barcellos” e eu achava um máximo e sorria só de agarrar naquele pedaço de papel.

O meu avô não ficava sem resposta. Eu escrevia de volta. Quando compramos um computador, eu comecei a enviar as cartas escritas em Word, pois ficavam melhores. Anexava cópias impressas dos primeiros artigos publicados no jornal online da faculdade. Mesmo à distância, sabia que ele e a minha avó iriam vibrar com as novidades entregues pela neta.

Já não recebo mais cartas do meu avô e tenho saudades. O tempo agora é medido no compasso dos likes e dos cliques. Os envelopes, as cartas e os recortes continuarão guardados numa caixa de cartão, até que as últimas letrinhas tremidas do meu avô sejam, finalmente, apagadas pelo tempo.

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Foto: Annie Spratt / Unsplash

Desafio de escrita Passa-palavra da Mel e da Mula. Palavra da semana: cartas.

Quem és tu?

28.10.20 | Alice Barcellos

Quem és tu por trás deste ecrã? Qual é a tua cor favorita? O que mais gostas de fazer? Qual é o teu maior sonho? Qual foi o teu maior trauma? É normal que não me queiras contar aqui, num comentário impessoal com limite de caracteres, intercalado por emojis. Num lugar onde só mostramos imagens planas e momentos congelados de um mundo redondo que está sempre girar.

Podíamos conversar num café, como antigamente se fazia. Escolhíamos uma mesa de canto e falávamos horas a fio, olhos nos olhos, sem filtros, sem máscaras. No fim, talvez já em casa, a pensar no encontro, poderíamos escolher se iríamos nutrir essa relação e se continuaríamos a querer conhecer mais um do outro até que soubéssemos, simplesmente, partilhar silêncios. É tão bom partilhar o silêncio. É valioso quando o ruído à nossa volta é cada vez maior.

Talvez nunca tenhamos essa chance mas, ainda assim, tu estás aqui a ler este texto e a seguir pessoas com as quais nunca terás uma relação na vida real. Deixas likes em fotos de lugares que nunca irás conhecer e admiras pessoas que usam a própria imagem para vender-te coisas.
E está tudo bem com isso. Eu também faço o mesmo. Mas é importante que tires um tempo do teu dia para pensar sobre esses hábitos e como podes fazer para torná-los mais saudáveis para ti e para quem está ao teu lado. Olha mais para dentro e menos para o ecrã. Pensa mais sobre quem és e quem queres ser sem a aprovação alheia.

Quem és tu? Quem és tu quando ninguém está a olhar?

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Imagem: Etienne Boulanger / Unsplash

Escrevi este texto no meu Instagram depois de ver o documentário "O dilema das redes sociais". Apesar de não trazer nada de novo à discussão, a verdade é que o documentário faz pensar ao mostrar testemunhos de quem vê o assunto de dentro, portanto, ganha outra credibilidade. Se não estivermos conscientes do uso que damos a estas plataformas, não passamos de uns fantoches nas mãos das grandes empresas tecnológicas. E vocês já viram? A que conclusões chegaram?

A ilha

26.10.20 | Alice Barcellos

I

O homem queria conhecer o mundo e partiu sem rumo

II

O barco virou uma casa e o mar rua, estrada, avenida

III

Havia por ali uma ilha deserta que ansiava receber visitas

IV

Durante a tempestade, a mulher caiu ao mar e perdeu-se

V

O homem, no seu barco, chegou à ilha e encontrou…

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Foto: Sébastien Jermer / Unsplash

Desafio da Abelha: Escreva uma história com dez palavras. Como palavra puxa palavra, saíram cinco histórias que formam uma só. Vejam aqui mais desafios de escrita da Abelha.

 

A almofada

23.10.20 | Alice Barcellos

Todas as noites, ela agarrava-se à almofada e rezava. Pedia muito para que naquela noite ele não viesse ao quarto. Rezava que não tivesse de sentir aquelas mãos pesadas contra o seu corpo frágil. Desejava, no mais profundo do seu ser, que não tivesse de passar por aqueles momentos de invasão, em que tentava desligar-se da realidade e transportar os seus pensamentos para uma qualquer memória de um tempo feliz. Como de quando ainda podia brincar livremente com os seus irmãos na rua. Havia ali um baloiço que o pai tinha construído para os filhos e que era muito disputado. Os rapazes tinham sempre prioridade, ela aproveitava para baloiçar quando os irmãos se distraíam com lutas. Aí, ela fechava os olhos e sentia o lenço que lhe envolvia os cabelos a ondular no vento.

Até hoje tinha raiva do pai por se ter desfeito dela como um objeto. “Se ao menos eu tivesse nascido rapaz”, pensava, enquanto apertava a almofada com força. Queria pedir ajuda, queria bradar ao mundo que algo deveria mudar. Mas sentia-se impotente. Aquele mundo não era para mulheres, naquele mundo elas não tinham voz. Um dia, vencida pela opressão, iria desistir destes pensamentos. Iria envelhecer rápido, gerar filhos e resignar-se. Até lá, todas as noites, continuaria a pedir para que a única presença naquela cama fosse a da almofada velha e gasta, que já não servia nem para embalar sonhos infantis.

Será que as crianças a quem foi roubada a infância ainda sonham?

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Imagem: Crianças no Bangladesh @Adrien Taylor / Unsplash

O Bangladesh é um dos países com as maiores taxas de casamentos infantis no mundo. Saiba mais sobre este tema aqui.

Desafio de escrita Passa-palavra da Mel e da Mula. Palavra da semana: almofada.

As palavras

19.10.20 | Alice Barcellos

Creio que as palavras não têm idade nem partido. São livres como pássaros e fazem-nos voar sem precisarmos de asas. Alegram-nos o quotidiano e fazem-nos aprender, sem nunca nos pedirem nada em troca. Muitos homens arruínam a pureza das palavras com as suas más intenções, usando-as para dividir e incendiar, em vez de unir e apaziguar. Quando a humanidade souber o verdadeiro poder da palavra, o mundo será um lugar melhor.

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Imagem: Randalyn Hill / Unsplash

Desafio das sete palavras da Ana de Deus. As palavras que me calharam foram retiradas do livro "Contra mim", de Valter Hugo Mãe.

Vejam aqui os desafios de escrita da abelha.

Como lidam com os comentários maldosos no vosso blogue?

16.10.20 | Alice Barcellos

Pensei bastante se deveria ou não escrever este texto, uma vez que, ao fazê-lo, estou a dar importância a um tema que, talvez, não a mereça.

Ainda assim, decidi avançar porque comecei a questionar-me que, tal como eu, existem outros bloggers que devem passar pela mesma situação. Portanto, este texto pode servir para um debate saudável de ideias e para a troca de experiências. E não é isso que procuramos quando escrevemos algo e tornamo-lo público?

Escrever é uma das grandes paixões da minha vida. A arte da escrita é uma das mais sublimes e difíceis... Necessita de dom e disciplina. Cada palavra é mágica e carrega consigo inúmeros símbolos. Cada frase composta é um pensamento transformado em realidade. Cada texto escrito é um pedaço meu que existe com mais intensidade. Escrevo, logo existo...

Este foi o primeiro post que fiz num blogue, no meu primeiro blogue. Em março de 2006. Tinha entrado para o curso de Ciências da Comunicação e Jornalismo da Universidade do Porto e o Escrevo Logo Existo era o meu diário, o meu escape, onde publicava os meus primeiros poemas, reflexões, crónicas, partilhava textos que gostava e, acima de tudo, onde escrevia quase sem filtros. Tinha 19 anos e todos os sonhos e ilusões do mundo.

Ao longo destes anos, o mundo mudou tanto e a forma como comunicamos online também. Surgiram as redes sociais e muitos disseram que os blogues iriam deixar de existir, mas a verdade é que eles continuam bem vivos, veja-se pela comunidade que existe aqui nos SAPO Blogs.

Quando comecei a trabalhar como jornalista no SAPO, resolvi criar um blogue aqui na plataforma e deixar de escrever no meu primeiro. Desde então, de forma mais ou menos regular, fui mantendo este exercício fascinante que é escrever e publicar num espaço mais pessoal do que, apenas, nos sites noticiosos para onde vou escrevendo enquanto jornalista.

Ao longo destes anos, houve algo que nunca mudou, infelizmente: os comentários maliciosos e ofensivos que temos de encarar por esta internet fora. É verdade que quando escrevemos e publicamos temos de estar preparados para ouvir críticas e ler comentários menos bons. O que eu me questiono é porque é que certas pessoas se dão ao trabalho de comentar de forma anónima sem acrescentar nada de válido, atacando direta ou indiretamente a pessoa que escreveu?

Escrevo sempre de coração aberto, tentando chegar, desta forma, ao coração das pessoas que me leem. O meu caminho vai sempre no lado do bem e fico um pouco desarmada quando apanho comentários depreciativos e maldosos, apesar de já levar com eles há muitos anos. Criei uma carapaça a este género de comentários que também contribuíram para aumentar os filtros na hora de escrever. Enquanto editora, já lidei com situações bem desagradáveis a nível profissional, de ter num site comentadores a atacar, em específico, um autor. Ignorar foi sempre a melhor forma de resolver estes casos.

Foi por conta destes comentários ressabiados - e dos racistas, machistas e extremistas que também gostam de destilar o seu ódio frustrado - que resolvi ter a aprovação prévia de comentários no meu blogue. Creio que seja uma boa forma de filtrar aquilo que realmente interessa. Aquilo que acrescenta. Às vezes, dou-me ao trabalho de aprovar e responder, acabando, sempre, por constatar que aquele comentário não acrescentou nada de positivo. Só dei tempo de antena a quem não merece.

Num mundo perfeito, em que as pessoas se respeitassem e soubessem o que é empatia, não precisaríamos de estar a falar sobre isso. Mas o mundo não é perfeito e está longe de o ser. Às vezes, cansa empurrar certos comportamentos (e comentários) sujos para debaixo do tapete. Precisamos de falar sobre eles. Expô-los. Principalmente numa altura em que o mundo está cada vez mais dividido e que muitos encaram como normal insultar de forma gratuita alguém na internet. A falta de respeito pelo próximo passou a ser encarada como liberdade de expressão.

E vocês, como lidam com este género de comentadores nos vossos blogues?joshua-gandara-xxn48oa73sM-unsplash.jpg

Imagem: Joshua Gandara / Unsplash

 

Versos, leva-os o vento

13.10.20 | Alice Barcellos

Ele faz as folhas falarem e comunica

o perfume das flores pelo ar

Quando é brisa vem sossegado e fica

Refrescando o rosto devagar

 

Pelo mundo faz o seu o caminho

De norte a sul, de leste a oeste

Nos desertos isolados, corre sozinho

Fazendo com que tudo fique mais agreste

 

Namora-se com os moinhos e com a roupa que seca nos varais

É um alento no estio, exceto quando espalha o fogo sem direção

Vem em lufadas, rajadas e vendavais

Uivando e cuspindo chamas como um dragão

 

Nunca avisa quando vai chegar

No outono exige que se use um cachecol

De repente, faz uma porta bater, uma saia esvoaçar

Faz estremecer até o mais alto farol

 

Despenteia os cabelos alinhados

Arrepia até a espinha dos corajosos

Sussurra palavras de amor aos apaixonados

Aterroriza as noites dos mais medrosos

 

É frio e forte quando sopra do Norte

Envolvente e cálido quando chega do Sul

Nas tempestades deixa os barcos à sua sorte

Faz crescer as ondas e rouba do mar o seu azul

 

Quando cresce como um monstro alado

Rodopia, varrendo tudo à sua volta

Tufão, furacão ou tornado

Não há nada que lhe encontre escolta

 

A sua energia pode alimentar qualquer cidade

Levanta tudo que poise no chão

Inspira poetas e desafia a criatividade

Do homem que o tenta domar em vão

 

Sem ele não existia movimento

É invisível mas está em todo lado

Não há nada igual ao vento

Sem ele o mundo era parado

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Imagem: Carissa Rogers / Unsplash

Desafio de escrita Passa-palavra da Mel e da Mula. Palavra da semana: vento.

 

Fim de verão

11.10.20 | Alice Barcellos

Tinha chovido. A prometida chuva de que falavam desde segunda-feira. Era quinta e, finalmente, tinha chovido. Mas pouco. O suficiente para deixar no ar aquele inconfundível cheiro a terra molhada, que me fez sair do prédio e respirar fundo para reforçar na memória as memórias que tenho deste cheiro. Infância, banho de chuva, pés descalços, felicidade. Depois disso, olhei para o céu e vi uma luz estranha, nuvens douradas que corriam depressa. O relógio dizia-me que estava quase na hora do pôr do sol. Mas ainda daria tempo para descer de carro até à praia.

Lá fui eu, pelo caminho do mar. Quando cheguei, foi isto que vi, isto que não o é. Nenhuma fotografia consegue captar a grandiosidade de certos fins de tarde. Este foi um deles. Ainda assim, eu tentei. Desci do carro, telemóvel na mão. Pisei a areia ainda marcada pelas gotas de chuva e subi numa rocha.

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Silêncio. Praia vazia. Quem passava parava para apreciar o momento. Um casal a passear o cão, um homem a fumar um cigarro dentro do carro. Mais alguns caminhantes. Naquele instante, éramos apenas pessoas a olhar o céu. E não há nada de errado nisso. O que será que cada um sentiu neste momento tão fugaz? O verão já acabou, passa sempre tão rápido. Tenho saudades de pessoas e lugares que nunca estiveram tão distantes. A pandemia é uma merda, mas vamos (temos) de passar por isso. Foi o que eu pensei. E que a saudade, tal como certos fins de tarde, não cabe numa fotografia.

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Aquele lápis

10.10.20 | Alice Barcellos

Ele andava hipnotizado por ela. Era nela que pensava ao adormecer e ao acordar. Desde a primeira vez que a vira, arranjava-se melhor antes de sair de casa. Começou a passar as t-shirts a ferro e comprou um perfume caro. Não se descuidava da barba e olhava-se com mais cuidado no espelho do elevador ao sair do prédio.

Nas horas livres, os seus pensamentos demoravam-se nela, em como o seu sorriso era um oásis de luz, a iluminar um mundo cinzento. Imaginava-se a dar longos passeios, com os dedos dela entrelaçados nos seus, enquanto sentiam a areia fria a fazer cócegas nos pés. Às vezes, até se esquecia de dar comida aos peixes dourados que nadavam às voltas no globo que tinha na secretária, ficando, logo a seguir, cheio de remorsos.

Quando estava no trabalho esperava, ansiosamente, pelo momento que ela fosse cruzar o corredor para uma reunião ou para sair. Ao contrário dele que passava os dias em frente ao ecrã do computador, perdido em códigos indecifráveis para a maioria dos colegas, ela ocupava um cargo de chefia noutro departamento.

O seu andar era forte e decidido, mas o olhar doce denunciava o bom coração. "Ela não é uma chefe, é uma líder", ele dizia aos colegas na hora de pausa, enquanto fumavam cigarros e trocavam comentários banais. Sentia-se a corar em frente aos outros, mas baixava a cabeça pois não queria que ninguém soubesse dos seus sentimentos.

Quando ouvia a sua voz um pouco rouca no fim do corredor, sabia que ela ia passar. Endireitava a postura na cadeira e arranjava os óculos. Ensaiava um semblante sério e concentrado.

Ela passava e deixava um rasto de perfume floral. Os longos cabelos negros iam quase sempre presos num puxo, com alguns fios rebeldes a escorregar pelo pescoço. Ali no meio naquele brilhante ninho de fios estava sempre um lápis, enrolado no cabelo. E por mais que ele tentasse concentrar-se outra vez nos códigos à sua frente, seria sempre naquele lápis que iria ficar a pensar nas próximas horas. Seria com aquele lápis que gostaria de começar a traçar uma linha diferente na sua vida.

Mas ela nunca olhava para trás.

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Desafio de escrita Passa-palavra da Mel e da Mula. Palavra da semana: lápis.

Contente em ter descoberto este novo desafio 'bora escrever?

Imagem: Tyler Nix on Unsplash

 

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