Naquela manhã luminosa de abril, Clara acordou com um pensamento na cabeça. Levantou-se cedo, como era habitual, pôs o café a fazer, enquanto ouvia as primeiras notícias na rádio. Nada de novo, pensou. Este seria mais um dia em que iria passar monocordicamente entre as tarefas da casa, a ida à mercearia, a preparação do almoço e do jantar. Mas hoje o dia começara diferente pois Clara tinha aquela vontade em mente.
O marido chegou à cozinha e ela voltou à realidade, alisando as pregas do robe. Serviu o café e as torradas em silêncio, enquanto ele folheava o jornal que ela deixava sempre em cima da mesa todas as manhãs.
Esperou que o marido saísse e correu até ao quarto como uma criança que foge escondida dos pais para brincar com o seu brinquedo novo. Tirou o robe e começou a desfazer os rolos do cabelo. Escolheu um vestido floral em tons de azul e lilás, uns sapatos beges, caprichou no perfume e, finalmente, foi buscar à bolsa o item que faltava para completar o visual: um batom vermelho.
Era a primeira vez que tinha um e seria a primeira vez que iria pintar os lábios desta cor. Uma amiga, que gozava de mais liberdade do que ela, tinha lhe oferecido, trouxera de uma viagem a Paris. Clara lembrou-se de Paris, que, apesar de não conhecer, povoava-lhe o imaginário com todos os clichés deliciosos da cidade. Pôs La vie en rose a tocar e ensaiou alguns passos de dança. Sem dar por ela, criou um pequeno ritual para concretizar aquele momento especial: pintar os lábios de vermelho.
Em frente ao espelho da penteadeira, contornou a boca, cuidadosamente. Começou pela parte de cima, descendo, depois, para a parte inferior, mais carnuda. Clara tinha uns lábios perfeitos e aquela cor realçou ainda mais a sua beleza única. Sentiu-se, pela primeira vez, poderosa. Sem saber muito bem o que era isso, sentiu que poderia ser dona de si e conquistar o mundo. Viajar até Paris, porque não?
Saiu de casa e foi fazer as tarefas do dia com mais confiança do que o habitual. Sentiu também que a sua presença foi mais notada. O padeiro deu-lhe um “bom dia” mais caloroso e as vizinhas cuscas que estavam sempre à janela olharam para Clara com um ar mais reprovador. Ela não quis saber, hoje o dia era dela e do seu batom vermelho.
Começou a preparar o almoço e arriscou fazer uma receita diferente. Queria deixar o marido bem-disposto. Ansiava por engravidar, a pressão pela chegada do primeiro filho era cada vez maior. Já não suportava ouvir da sogra a mesma pergunta: “e então, Clarinha, é este ano que chega o meu neto?”
Entretanto, o marido chegou, silencioso como sempre, para almoçar. Ela recebeu-o com um “boa tarde” mais caloroso do que o habitual e um sorriso que lhe iluminou a face. Ele não retribuiu. Pelo contrário, o semblante fechou. Caminhou em sua direção e tocou-lhe nos lábios, começando a esfregar o batom. “O que vem a ser isso, Clara?”, perguntou, sem lhe dar tempo para responder. “Pareces uma vadia com este batom vermelho. Andas com ideias. Vai já limpar a cara, antes de servir o almoço”, ordenou. Ela colou os olhos ao chão, enquanto as lágrimas pesavam, e caminhou em direção ao quarto de banho. Limpou as lágrimas e o batom. O reflexo no espelho já não mostrava poder. Voltou a sentir-se inferior e imprestável.
O marido chamou. “Clara, então, precisas de ajuda ou vens almoçar”. Ela estremeceu, não, não queria a presença dele naquele momento, não queria dar motivos para marcas físicas, as psicológicas já doíam muito. Lavou a cara com água fria, ajeitou o cabelo e certificou-se de que os lábios estavam na cor habitual.
Sem cor, sem voz, Clara chegou à cozinha. Serviu o almoço. O marido foi embora, sem dizer mais uma palavra. Ela lavou a louça a chorar, enquanto pensava que, talvez, um dia, pudesse libertar-se de tantas amarras e sofrer um pouco menos. Um dia, quem sabe, seria livre e a liberdade teria uma cor. A liberdade seria vermelha.
Imagem: Jessica Lewis / Unsplash