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Diário de fuga

Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

Diário de fuga

Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

Podíamos ser nós

28.01.21 | Alice Barcellos

Podíamos ser nós. Sempre que vejo aquelas fotografias clichés de grávidas penso nisso.

Quando vi os dois tracinhos no teste comecei a criar expectativas. É inevitável, como quase em tudo na vida. Vivemos a alimentar expectativas do que ainda não aconteceu. Quando é algo que nos deixa felizes, a felicidade ofusca-nos a visão e não cogitamos a hipótese de que nem tudo corre como imaginamos.

Podíamos ser nós a tirar aquela foto com as mãos na barriga grande, com aquela aura de amor que envolve os futuros pais, como se tudo fosse perfeito naquele instante de espera pelo maior milagre da vida. Mas não aconteceu.

Quando não encontrei o que esperava ver na ultrassonografia, as minhas expectativas desmoronaram, como um castelo de cartas que é levado pelo vento. O meu mundo caiu naquele dia, inundado por lágrimas que brotavam de forma involuntária, tal como tudo o que teve de sair.

A tristeza é sempre a última a ir embora. O tempo cura quase tudo e a natureza sabe o que faz. As lágrimas ainda regressam, às vezes, sem pedir licença. E, quando vejo aquelas fotografias bonitas de grávidas, penso: um dia, quem sabe, seremos nós.

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Texto escrito no âmbito dos Desafios da Abelha. Veja aqui.

Imagem: Sasha Freemind / Unsplash

Nota da autora sobre este desafio

Fiquei a ponderar muito quando vi a imagem proposta no desafio. Se havia de resumir esta minha história em 200 palavras, se havia de contá-la assim, sem floreados, se queria partilhar este episódio com o “mundo”. Mas a ideia foi ganhando forma e resolvi escrever. A escrita é sempre uma mão amiga nos momentos mais difíceis. Quer seja a ler ou a escrever, as palavras são um conforto e um escape. Não sei se este texto vai chegar a mulheres que já passaram por um aborto espontâneo, mas, se chegar, saibam que não estão sozinhas e que a dor vai perdendo força quando é compartilhada.

Batom vermelho

22.01.21 | Alice Barcellos

Naquela manhã luminosa de abril, Clara acordou com um pensamento na cabeça. Levantou-se cedo, como era habitual, pôs o café a fazer, enquanto ouvia as primeiras notícias na rádio. Nada de novo, pensou. Este seria mais um dia em que iria passar monocordicamente entre as tarefas da casa, a ida à mercearia, a preparação do almoço e do jantar. Mas hoje o dia começara diferente pois Clara tinha aquela vontade em mente.

O marido chegou à cozinha e ela voltou à realidade, alisando as pregas do robe. Serviu o café e as torradas em silêncio, enquanto ele folheava o jornal que ela deixava sempre em cima da mesa todas as manhãs.

Esperou que o marido saísse e correu até ao quarto como uma criança que foge escondida dos pais para brincar com o seu brinquedo novo. Tirou o robe e começou a desfazer os rolos do cabelo. Escolheu um vestido floral em tons de azul e lilás, uns sapatos beges, caprichou no perfume e, finalmente, foi buscar à bolsa o item que faltava para completar o visual: um batom vermelho.

Era a primeira vez que tinha um e seria a primeira vez que iria pintar os lábios desta cor. Uma amiga, que gozava de mais liberdade do que ela, tinha lhe oferecido, trouxera de uma viagem a Paris. Clara lembrou-se de Paris, que, apesar de não conhecer, povoava-lhe o imaginário com todos os clichés deliciosos da cidade. Pôs La vie en rose a tocar e ensaiou alguns passos de dança. Sem dar por ela, criou um pequeno ritual para concretizar aquele momento especial: pintar os lábios de vermelho.

Em frente ao espelho da penteadeira, contornou a boca, cuidadosamente. Começou pela parte de cima, descendo, depois, para a parte inferior, mais carnuda. Clara tinha uns lábios perfeitos e aquela cor realçou ainda mais a sua beleza única. Sentiu-se, pela primeira vez, poderosa. Sem saber muito bem o que era isso, sentiu que poderia ser dona de si e conquistar o mundo. Viajar até Paris, porque não?

Saiu de casa e foi fazer as tarefas do dia com mais confiança do que o habitual. Sentiu também que a sua presença foi mais notada. O padeiro deu-lhe um “bom dia” mais caloroso e as vizinhas cuscas que estavam sempre à janela olharam para Clara com um ar mais reprovador. Ela não quis saber, hoje o dia era dela e do seu batom vermelho.

Começou a preparar o almoço e arriscou fazer uma receita diferente. Queria deixar o marido bem-disposto. Ansiava por engravidar, a pressão pela chegada do primeiro filho era cada vez maior. Já não suportava ouvir da sogra a mesma pergunta: “e então, Clarinha, é este ano que chega o meu neto?”

Entretanto, o marido chegou, silencioso como sempre, para almoçar. Ela recebeu-o com um “boa tarde” mais caloroso do que o habitual e um sorriso que lhe iluminou a face. Ele não retribuiu. Pelo contrário, o semblante fechou. Caminhou em sua direção e tocou-lhe nos lábios, começando a esfregar o batom. “O que vem a ser isso, Clara?”, perguntou, sem lhe dar tempo para responder. “Pareces uma vadia com este batom vermelho. Andas com ideias. Vai já limpar a cara, antes de servir o almoço”, ordenou. Ela colou os olhos ao chão, enquanto as lágrimas pesavam, e caminhou em direção ao quarto de banho. Limpou as lágrimas e o batom. O reflexo no espelho já não mostrava poder. Voltou a sentir-se inferior e imprestável.

O marido chamou. “Clara, então, precisas de ajuda ou vens almoçar”. Ela estremeceu, não, não queria a presença dele naquele momento, não queria dar motivos para marcas físicas, as psicológicas já doíam muito. Lavou a cara com água fria, ajeitou o cabelo e certificou-se de que os lábios estavam na cor habitual.

Sem cor, sem voz, Clara chegou à cozinha. Serviu o almoço. O marido foi embora, sem dizer mais uma palavra. Ela lavou a louça a chorar, enquanto pensava que, talvez, um dia, pudesse libertar-se de tantas amarras e sofrer um pouco menos. Um dia, quem sabe, seria livre e a liberdade teria uma cor. A liberdade seria vermelha.

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Imagem: Jessica Lewis / Unsplash

Um ano depois, top 10 de New York

18.01.21 | Alice Barcellos

IMG_2212.jpegDon’t be afraid of anyone. Foi uma das primeiras frases que li quando cheguei a Nova Iorque, faz agora um ano. Estava pintada em algumas das esquinas de Times Square e resumia bem o sentimento que a cidade passa. Ou, pelo menos, que me passou. Não tive medo de ninguém, senti-me segura, senti o respeito a circular ali. Arranhei a superfície da Big Apple e foi o suficiente para me apaixonar.

Não sei se foi sorte ou conjugação dos astros – sendo que não acredito em nada disso –, mas a verdade é que foi uma das viagens mais perfeitas que já fiz. A companhia, o clima, a cidade sem enchentes de turistas, o café – nem sempre bom – a aquecer-nos as mãos enquanto palmilhávamos as ruas numeradas de Manhattan.

O tempo passou, o mundo mergulhou numa guerra, digo, pandemia. Aliás, despedimo-nos do mundo pré-covid em NYC. Os EUA, aos comandos daquele lunático, foram fortemente atingidos, Nova Iorque foi um dos epicentros. Eu tive medo, Nova Iorque teve medo, o mundo teve e tem medo do coronavírus, enquanto muitos líderes políticos mostram toda a sua insensibilidade à vida humana no (des)governo desta crise pandémica. Passamos do don't be afraid of anyone ao embrace the absurd. Quem diria que, durante um ano, o mundo mudaria tanto?

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Faz agora um ano que fiz a minha a última viagem de avião. Não que isso tenha muita importância, mas para quem, como eu, tem família longe, lá do outro lado do Atlântico, pesa. As saudades apertam mais do que o habitual, enquanto esperamos o momento ideal para voltar a comprar um bilhete.

Esperar é um jogo. Os americanos têm aquela expressão que adoro: waiting game. Esperamos, enquanto tentamos não desesperar, vemos e revemos vezes sem conta as fotografias desta viagem perfeita e fazemos planos para as próximas.

Até lá, e para inspirar os corações viajantes que me leem, deixo o meu top 10 de Nova Iorque. Ficará a faltar sempre algo, tal como NY será um destino para regressar sempre que possível.

1. Descer a Quinta Avenida, passando por alguns parques, até chegar ao Washington Square Park. O passeio pode começar no Bryant Park. Paragem obrigatória: New York Public Library. Pode fazer um desvio à Grand Central. Ir tomar o pequeno-almoço à Panera Bread.

2. Passear no bairro de Chelsea: ver a street art, galerias de arte e apreciar os prédios baixinhos, imaginando que poderíamos viver numa daquelas casinhas. Ir comer ao Chelsea Market. Foi um dos bairros com o qual mais me identifiquei.

3. Percorrer o Brooklyn. Ver a vista do Dumbo e ir comer ao Time Out Market. Atravessar a Brooklyn Bridge a pé durante o pôr do sol - parar para tirar muitas fotos do momento.

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4. Ir ao MET. Se tiver de escolher apenas um museu para a sua visita, vá ao MET. Tem um espólio impressionante e as salas estão muito bem conseguidas. Não deixe de apreciar os Impressionistas. Se gostar muito de dinossauros, vá ao também ao Museu de História Natural.

5. Passear quantas vezes for possível no Central Park. Para fugir da selva de pedras e encontrar a natureza em plena Manhattan. Tirar uma foto na estátua mais linda do parque, a da Alice no País das Maravilhas .

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6. Circular por Times Square à noite e deixar-se levar pelas luzes e pelo movimento. Terminar a noite num musical da Broadway. Ir comer fatias de pizza ao Joe’s ou comida italiana ao Carmine’s.

7. Explorar West Village. Descobrir o charme requintado deste bairro. Passar pelo famoso apartamento da série Friends e saber um pouco mais sobre a luta pelos direitos LGBT no Stonewall National Monument. Ir comer ao Peacefood.

8. Caminhar pelas ruas de Williamsburg. Paragem para comer e conhecer um dos restaurantes mais tradicionais de NYC: Peter Luger.

9. Percorrer Lower Manhattan. Ir ao One World Trade Center. Sentir o silêncio no meio do coração financeiro da cidade junto ao memorial às vítimas do 9/11. Subir ao observatório para ter uma vista incrível. Ir comer pastrami ao Katzs Deli.

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10. Ir ao Top of The Rock à noite. Para fechar com chave de ouro e ter aquela vista digna de filme, subir ao icónico Rockefeller Center. Explorar a área circundante. Entrar na loja de brinquedos FAO Schwarz e ir buscar um bolo (os brownies são divinais) à Magnolia Bakery.

Para quem ainda não leu/viu, deixo aqui os dois posts que já publiquei sobre esta viagem:

Feliz ano velho novo

12.01.21 | Alice Barcellos

Era um daqueles fins de tarde de inverno em que o brilho do sol fazia estalar o ar limpo e frio. O mar estava excecionalmente calmo, uma piscina cuja borda era a linha do horizonte, tão reta e sempre longe. Enquanto o astro rei se preparava para mergulhar naquela piscina azul marinha, o rebuliço era grande pelos passadiços: corredores rápidos de olhar perdido, pais com crianças, cães a passear os donos, amigas que aproveitam a caminhada para conversar.

Sentado num daqueles bancos de madeira, desbotados pela maresia, o velho, de sobretudo cinzento e chapéu preto, passava despercebido entre tanto movimento. Chorava em silêncio enquanto observava o morrer de mais um dia.

A primeira semana do ano novo havia ficado para trás e já ninguém queria falar do ano passado. Aliás, era até considerado quase um insulto desejar feliz ano novo naquela altura, estava fora do prazo. Como se 365 dias fossem esquecidos em uma semana, quando sabemos que há datas que são feridas à espera do tempo para cicatrizá-las, quem sabe, fechá-las. Aquele ano seria para sempre uma cicatriz feia na história do mundo, mas era preciso seguir em frente. Correr até, se fosse possível, com olhar e pensamentos perdidos, ainda melhor.

O velho chorava e esperava não desaparecer tão rápido como os minutos fugazes de um pôr do sol. Queria perdurar também como aquele momento que, embora tão rápido, consegue ficar eternizado para sempre na memória.

Houve um jovem que reparou no velho e sentou-se ao seu lado. Era lindo e tinha no olhar o ímpeto do recomeço. Transpirado, apenas de t-shirt e calções brancos, parou a corrida para saber o que se passava com o velho. Afinal, nem todos os que correm estão perdidos.

Este contou-lhe que tinha medo de desaparecer sem ficar marcado na memória de ninguém. Como um ano velho que acaba e que é deitado fora entre as páginas do calendário desatualizado, como o jornal do dia anterior que serve para embrulhar peixe, como os vistosos papéis das prendas que são rasgados sem piedade, como tudo o que é rapidamente esquecido. Ele não queria terminar assim. E se as pessoas passassem a desejar também um feliz ano velho? Perguntou o jovem. Talvez fosse uma forma de continuar a lembrar daquilo que já passou. É bom olhar para o que passou e tentar retirar dali algo que não seja apagado pelo novo. O velho ensaiou um pequeno sorriso. Porque não começar a tentar?

Levantaram-se, ao mesmo tempo, o (ano) velho e o (ano) novo, enquanto caminhavam, lado a lado, iam desejando a quem passava: feliz ano velho novo. A bola laranja foi mergulhando no mar, o crepúsculo engoliu os contornos do dia. Os transeuntes desapareceram dos passadiços e, lá ao fundo, velho e novo confundiam-se na mesma silhueta. Afinal, tudo o que é velho foi novo e tudo o que é novo velho será.

sunset-600095_1920.jpgImagem: Pixabay