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Diário de fuga

Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

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Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

A almofada

23.10.20 | Alice Barcellos

Todas as noites, ela agarrava-se à almofada e rezava. Pedia muito para que naquela noite ele não viesse ao quarto. Rezava que não tivesse de sentir aquelas mãos pesadas contra o seu corpo frágil. Desejava, no mais profundo do seu ser, que não tivesse de passar por aqueles momentos de invasão, em que tentava desligar-se da realidade e transportar os seus pensamentos para uma qualquer memória de um tempo feliz. Como de quando ainda podia brincar livremente com os seus irmãos na rua. Havia ali um baloiço que o pai tinha construído para os filhos e que era muito disputado. Os rapazes tinham sempre prioridade, ela aproveitava para baloiçar quando os irmãos se distraíam com lutas. Aí, ela fechava os olhos e sentia o lenço que lhe envolvia os cabelos a ondular no vento.

Até hoje tinha raiva do pai por se ter desfeito dela como um objeto. “Se ao menos eu tivesse nascido rapaz”, pensava, enquanto apertava a almofada com força. Queria pedir ajuda, queria bradar ao mundo que algo deveria mudar. Mas sentia-se impotente. Aquele mundo não era para mulheres, naquele mundo elas não tinham voz. Um dia, vencida pela opressão, iria desistir destes pensamentos. Iria envelhecer rápido, gerar filhos e resignar-se. Até lá, todas as noites, continuaria a pedir para que a única presença naquela cama fosse a da almofada velha e gasta, que já não servia nem para embalar sonhos infantis.

Será que as crianças a quem foi roubada a infância ainda sonham?

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Imagem: Crianças no Bangladesh @Adrien Taylor / Unsplash

O Bangladesh é um dos países com as maiores taxas de casamentos infantis no mundo. Saiba mais sobre este tema aqui.

Desafio de escrita Passa-palavra da Mel e da Mula. Palavra da semana: almofada.

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