A barca do céu
Era um dia daqueles em que o sol brincava com as nuvens, escondendo-se e revelando-se, enquanto mudava as cores destes pedaços de algodão celestiais. O rio corria sereno, emoldurado numa das margens por árvores que viviam suspensas entre a água e a terra. Tudo era verde e azul. A luz alta do meio-dia, o chilrear dos pássaros, o burburinho do rio a seguir o seu curso. Apetecia estar ali a contemplar aquele quadro, mas não havia ninguém, exceto a menina que se debruçava nas margens para tocar com as mãos na água.
Perto dela jazia uma barca de madeira, carcomida pelo tempo, quase abandonada. Flutuava no rio, mas estava presa em terra por uma corrente. Como um cão atrelado que deseja correr na praia, a barcaça queria correr com o rio. Mas ali estava presa às memórias de outros tempos, quando era um meio de transporte que ligava as duas margens e as populações que viviam entre aquelas aldeias perdidas nas serras.
Agora, era apenas também ela um pedaço de passado que ainda estava preso ao presente, mas sem vislumbre de futuro. Esperava que alguém resolvesse tomar-lhe os remos, como, outrora, faziam experientes barqueiros. A menina queria subir na barca, mas tinha medo de desequilibrar-se e cair nas profundezas verdes e opacas do rio. Aproximava-se da barca e ficava a magicar uma solução de como puxá-la para mais perto da margem de forma a conseguir subir com segurança. A barca era pesada, maciça, e não parecia querer aproximar-se de ninguém.
Até que chegou o velho, que ainda trabalhava nos campos que restavam por ali e que sabia bem como domar o barco de madeira. “Ó, da barca”, chamou o velho. A menina sorriu, enquanto se baloiçava nos braços fortes do avô. O velho agarrou um tronco e puxou a barca até à menina que se esfuziava com a possibilidade de entrar, finalmente, ali. Mas não se podia entrar. A barca estava cheia de água.
Oh, que barca inútil! – exclamou a menina – Não serve para nada.
Serve, sim – respondeu o avô – Olha bem para ela e vais navegar para muito longe daqui.
A menina olhou mais uma vez e encontrou um quadro vivo dentro da barcaça que refletia o céu, as nuvens, o rio e as árvores.
É a barca do céu – disse.
Sim, é – respondeu o avô.
E ali ficaram os dois a flutuar naquele momento que se fez eterno.
A fotografia que inspirou esta história foi tirada na aldeia de Janeiro de Cima