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Diário de fuga

Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

Diário de fuga

Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

A história de uma onda

07.11.20 | Alice Barcellos

Nasci numa imensidão azul sem terra que pudesse ser vista. Mas o vento, meu pai, empurrou-me na direção certa. Sabia que este dia iria chegar, o dia em que sairia do âmago da minha mãe, o oceano, e iria cumprir a minha missão.

Quando nasci era pequena, ainda não me destacava muito na superfície, fui crescendo e ganhando volume. Sentia a energia cada vez mais forte enquanto me aproximava da costa. Então era isso que me esperava, a linha do horizonte deixou de ser reta e passou a ser pontilhada de várias cores e formatos. Ao longe, os contornos do areal, do esporão, do farol e da cidade estavam ainda difusos, mas sabia, por estar a vê-los, que seguia na direção certa.

De repente, sinto algo rápido a trespassar por mim. Um golfinho aproveitava a minha energia para apanhar boleia, afastando-se com a minha aproximação cada vez mais iminente da praia.

Estava maior e mais forte. Tinha uma crista verde-esmeralda de onde o vento roubava pequenas gotas de água no ponto mais alto, criando pequenos arco-íris que reluziam aos raios de sol daquela manhã gloriosa de verão.

Quase a atingir o meu apogeu, sinto algo estranho a descer por mim. Foi tudo muito rápido, mas foi perfeito. A rapariga numa prancha tirou o máximo partido da minha estrutura. Seguiu para a direita, frente à frente comigo. Com a ponta dos dedos deixou um rasto desenhado na minha parede. Desceu, subiu, voltou para buscar um novo impulso na espuma que já se começava a formar numa das minhas extremidades.

Estava a chegar o momento. Sentia que perdia as forças, mas queria prolongar aquele instante de êxtase para sempre. A surfista saltou por cima da minha crista, ao mesmo tempo em que me desfazia em espuma.

Já não era mais estruturada e forte. No entanto, continuava o meu caminho. Cada vez mais próxima, podia espreitar a areia por baixo de mim. A minha espuma branca foi ficando mais fraca até, finalmente, desfalecer na areia, inofensiva. Ainda assim, consegui molhar os pés de um menino que descobria o mar pela primeira vez.

Acabou por aqui o meu caminho. Nesta praia que me recebeu da melhor forma possível. Atrás de mim, muitas irmãs virão, nesse devir constante que é a vida. A vida das ondas não tem fim.

pamela-heckel-yQ9-lq5vnlY-unsplash.jpgImagem: Pamela Heckel / Unsplash

Desafio de escrita Passa-palavra da Mel e da Mula. Palavra da semana: água.

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