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Diário de fuga

Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

Diário de fuga

Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

Aqueles pássaros não se calam

06.12.19 | Alice Barcellos

A cela era um cubículo sombrio e imundo no qual nenhum ser ou coisa deveria estar. No entanto, lá estava ele. Ora nu, ora em farrapos, era para ali atirado como um saco de lixo, depois dos intermináveis interrogatórios. Isso para não falar na tortura. Algo que nunca nenhum ser ou coisa deveria suportar. E, no entanto, ele suportava.

Já não sabia há quanto tempo estava naquele inferno, o dia da semana, as horas. Pelos seus cálculos difusos, prejudicados pela fome, pelo sono e pela falta de sanidade mental, julgava ser dezembro.

Os seus dias eram medidos a toque do medo e dos sons que ouvia na prisão. As chaves a tilintar no bolso dos seus algozes, os passos pesados das botas de biqueira de aço, os gritos desesperados dos outros prisioneiros, a pancada seca do bastão nas costas ou na cabeça. Desmaiava e era despertado com baldes de água fria e choques. Mais uma vez, era atirado ao lixo.

O calor aumentava na mesma proporção do desespero. Era dezembro, só podia ser. Dezembro dos mergulhos no mar, do futebol em Ipanema e dos dias de praia intermináveis. Da cerveja gelada e do samba com os amigos até ao amanhecer. Dezembro de festa e de fim de ciclo. Seria este o seu último mês de dezembro? Teria de pagar com a própria vida só porque pensava diferente e ousara lutar pelas suas ideias? Não, respondia para si mesmo. Dezembro teria de ser também de resistência.

Na cela, havia uma minúscula janela, quadrado fechado com barras de ferro, de onde conseguia ver uma nesga de céu. Era a única ligação que estabelecia com o mundo lá fora. O céu e o canto dos pássaros. Na alvorada, quando a prisão estava silenciosa, ele ouvia o alvoroço dos pássaros que por ali viviam. Por momentos, concentrava-se nisso. No canto do sabiá, do sanhaço, do joão-de-barro. Do bem-te-vi. Ah, o canto do bem-te-vi encerrava nele uma esperança sem explicação.

Aqueles pássaros não se calam, pensava. Por favor, pássaros, nunca se calem, suplicava. Enquanto houver pássaros a cantar, haverá resistência.

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Texto escrito no âmbito do Desafio dos Pássaros.

Tema da semana: Aqueles pássaros não se calam. Vejam aqui todos os textos deste desafio de escrita dos blogues do SAPO.

Imagem: Pixabay

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