As cartas do meu avô
Já não recebo mais cartas tuas, avô, e creio que na época não dei o devido valor à relíquia que me chegava, de quando em quando, na caixa de correio. Naquele tempo medíamos o tempo de forma diferente. No compasso de espera de uma carta. Nos números do teclado duro da cabine telefónica que usávamos para fazer chamadas internacionais.
Quando nos mudamos para Portugal, eu e minha mãe não tínhamos computador em casa. Íamos ao Centro Multimeios de Espinho e subíamos ao último piso, onde existia uma sala de computadores para uso do público. Só tínhamos de dar o nome e ganhávamos uma hora para estar ali a navegar pela web. Uma hora era o suficiente para ver os e-mails e fazer alguma pesquisa para a escola. Não havia interesse em estar ali mais tempo. É, olhando agora para trás, medíamos mesmo o tempo de forma diferente.
O hábito de enviar cartas foi deixando de existir, mas o meu avô manteve-o quase até o fim. Elas chegavam em envelopes de papel pardo e só de olhar para a sua caligrafia, já um pouco tremida, reconhecia logo o remetente. Dentro do envelope havia sempre uma carta a contar as últimas novidades da família do lado de lá do Atlântico e recortes de jornais. O meu avô lia o jornal todos os dias, de cabo a rabo, nada lhe escapava. Enviava-me artigos de opinião, principalmente, e reportagens. Na época, eu já sabia que queria seguir jornalismo e, desde então, o meu avô escrevia sempre nos envelopes “À Jornalista Alice Barroso Barcellos” e eu achava um máximo e sorria só de agarrar naquele pedaço de papel.
O meu avô não ficava sem resposta. Eu escrevia de volta. Quando compramos um computador, eu comecei a enviar as cartas escritas em Word, pois ficavam melhores. Anexava cópias impressas dos primeiros artigos publicados no jornal online da faculdade. Mesmo à distância, sabia que ele e a minha avó iriam vibrar com as novidades entregues pela neta.
Já não recebo mais cartas do meu avô e tenho saudades. O tempo agora é medido no compasso dos likes e dos cliques. Os envelopes, as cartas e os recortes continuarão guardados numa caixa de cartão, até que as últimas letrinhas tremidas do meu avô sejam, finalmente, apagadas pelo tempo.
Foto: Annie Spratt / Unsplash
Desafio de escrita Passa-palavra da Mel e da Mula. Palavra da semana: cartas.