Como a crise na Venezuela está a deixar o mundo ainda mais preto e branco
Vivemos num tempo em que és de esquerda ou és direita, és comunista ou és fascista, és completamente a favor ou és completamente contra. É preto ou é branco. E no cinzento, ali no meio, milhões de pessoas pagam muito caro por esta divisão cada vez maior alimentada por um discurso de ódio maniqueísta, amplificado pelas redes sociais - onde se dão as discussões mais fervorosas e, ao mesmo tempo, mais superficiais de sempre.
Esta semana explodiu, embora de forma controlada, o barril de pólvora que a Venezuela se tornou nos últimos anos. Para refrescar a memória: Nicolás Maduro está no cargo de presidente desde 2013, com poderes especiais, tendo tomado várias medidas anti-democráticas. Maduro foi o sucessor de Hugo Chávez, que esteve no cargo de presidente desde 1999. Antes disso, em 1992, Chávez tinha tentado um golpe de Estado contra o presidente Carlos Andrés Pérez como resposta à crise económica, marcada por inflação e desemprego, que o país atravessava.
A revolução socialista de Chávez pode ter tentado mudar muita coisa, mas não encontrou solução para um ponto fundamental: a dependência económica ao petróleo. Como é possível, com tantos antecedentes, manter um sistema de gestão que não funciona e que causa, inevitavelmente, crises económicas graves? Assim que, volvidos tantos anos, com um governo populista que luta para permanecer no poder usando todos os meios possíveis e anti-democráticos, o país atravessa uma crise sem precedentes - a pior da história venezuelana, mais grave do que a dos Estados Unidos durante a Grande Depressão.
Segundo números da ONU, mais de 2,3 milhões de venezuelanos deixaram o país nos últimos três anos. Um número maior do que os refugiados que entraram na União Europeia nos últimos quatros anos (1,8 milhões).
Os que ficam lutam contra condições extremas: falta tudo num país onde o dinheiro não vale nada. A população vive sem o básico e sem perspectivas de futuro. Crianças morrem todos os dias a fome, num flagelo gravíssimo que o governo tenta esconder a todo o custo. Se não tiveram hipótese de ler e ver, esta é a altura ideal para conhecerem este trabalho de investigação do New York Times sobre a mortalidade infantil no país.
Cartoon de Camdelafu partilhado pelo P3
Por estes dias, o mundo voltou a olhar para Venezuela com olhos de ver e, provavelmente, muita gente já se tinha esquecido desta situação de crise económica e social nos últimos tempos. O líder da oposição, Juan Guaidó, autoproclamou-se presidente interino do país, defendendo um governo de transição e a realização de eleições livres, perante uma multidão que se manifestava em Caracas. Seguiram-se ondas de reações a favor e contra esta tomada de posição, de reconhecimento do novo líder ou de recusa.
E, enquanto o impasse permanece, multiplicam-se os comentários de que o único interesse em retirar Maduro do poder é a sede norte-americana ao petróleo da Venezuela. É o preto e o branco. Ou és pró ou és contra os americanos. Ou és pró ou és contra os russos. Quem disse que a Guerra Fria acabou estava redondamente enganado. Neste jogo de poder mundial, as peças estão agora sobre o tabuleiro da Venezuela e é fácil passar a mensagem de que "isso não passa de um golpe dos Estados Unidos para ficar com o petróleo todo".
Mas, meus caros leitores, pasmem-se: os Estados Unidos nunca deixaram de ser o maior comprador de petróleo da Venezuela. Apesar das "bocas" anti-americanas de Chávez e Maduro, os barris continuaram e continuam a seguir a todo o vapor para o Tio Sam. Nunca houve um boicote ou algo do género. Por isso, parem de entrar neste jogo que nos querem impor, sem antes refletir no que realmente importa: as pessoas.
Eu espero que Maduro e cia. saiam o quanto antes do poder e que a Venezuela tenha eleições livres. Que seja possível restaurar um pouco de dignidade e, com ela, bens essenciais, cuidados de saúde e educação que o país perdeu nestes últimos anos. Não sei se quem chegará ao poder será um fantoche dos EUA, da Rússia ou da China, se será de direita ou de esquerda. Só espero que seja alguém que consiga mudar o país para melhor porque a situação é insustentável.
Infelizmente, grande parte das tomadas de decisão não está nas mãos do povo. Mas está nas nossas mãos a capacidade de pensar, refletir, pesquisar, exigir a verdade e a multiplicidade dos factos, sem ir atrás de ideias que circulam à velocidade de posts e tweets. Está na altura de abrirmos os olhos para os milhares tons de cinzento que existem entre o preto e o branco. O extremismo não nos vai levar a lado nenhum que não seja o de governos totalitários e que deixam as pessoas para o último plano. Exemplos não faltam por aí.
Protesto de venezuelanos, 23 de janeiro, Porto. Foto: Daniel Mckay