Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Diário de fuga

Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

Diário de fuga

Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

Dia de nevoeiro

31.10.19 | Alice Barcellos

A cidade acordou pintada de cinza. O nevoeiro disfarçava a feiura dos prédios desordenados e a chuva miudinha, quase etérea, deixava as mulheres com os cabelos em pé e fazia com que as pessoas andassem com os olhos semicerrados. Era difícil encontrar alguém que não estivesse com a cara amarrada, quer fosse por causa do tempo, quer fosse por causa da vida, que não estava fácil. Nunca é fácil. 

Quem andava a pé, apressava-se. Os autocarros passavam, pachorrentos, com as janelas a escorrer humidade e, entre o embaçado, rostos tristes olhavam cá para fora. Olhavam sem ver nada. 

Até nos cafés sentia-se um silêncio velado como que a fazer funeral pelos dias de sol, estes dias de luz que deixam a existência mais leve. Só se ouvia o mastigar das torradas, o folhear do jornal. Os adultos enfiavam-se nos seus ecrãs e as crianças escolhiam brincadeiras de gestos curtos e poucas palavras. 

Nas estradas, os carros circulavam num para-arranca desesperador e as filas de trânsito arrastavam-se por quilómetros. 

Ele saiu. Parou o carro e vestiu o capuz. Foi pôr a roupa a lavar e a secar na lavandaria do bairro. Disse alguns "boa tarde" não correspondidos a desconhecidos, sorveu uma meia de leite num café sombrio, pagou contas.

Voltou para o carro. O nevoeiro crescia. Tudo era já quase branco, as coisas perdiam as suas formas para essa massa húmida e desforme que tudo contaminava. 

Ele conduziu. Conduziu em busca de uma aberta. Queria ver melhor as coisas. Queria fugir daquilo. Queria respostas. Queria uma cura para aquele aperto no peito e para a sombra que todos os dias pesava o seu olhar. Conduziu e, pelo caminho, não viu ninguém, nada, até as árvores e os postes perderam os contornos.

A estrada acabou. Ele já pouco via, mas sentiu pela aderência dos pneus que o carro estava a tocar na areia. Saiu para este mundo branco de nevoeiro-chuva que, afinal, se revelava desconhecido. Era tristemente silencioso. Silêncio quebrado apenas pelo barulho das ondas. Pelo som, o mar estava calmo. Ao menos isso, pensou.

Estava só. Quando tudo é engolido pelo nevoeiro, a solidão mostra-se enorme.

A solidão dói mais em dias assim.

jakub-kriz-arOyDPUAJzc-unsplash.jpg

Foto: Jakub Kriz / Unsplash