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Diário de fuga

Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

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Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

Encontrar a fé no Vaticano

08.11.15 | Alice Barcellos

Não posso dizer que tenha religião. Revejo-me nos valores cristãos mas fico por aí. Não consigo esquecer a máquina de poder, riqueza e opressão construída pela igreja católica ao longo dos séculos. Nunca consegui acreditar em milagres, santos e visões.

No que toca à religião sou quase como Sophia tão bem escreveu: “(...) o teu amor pelas coisas visíveis que é a tua oração em frente do grande Deus invisível”. Sei que há algo que me transcende, mas só o consigo encontrar naquilo que vejo, quer seja numa praia paradisíaca, quer seja numa obra de arte, ou numa magnólia em flor.

Assim que estando em Roma seria impossível não ir ao Vaticano, não para ver o Papa, que por acaso até estava a dar a sua audiência geral de quarta-feira, mas para ver outros “deuses”, aqueles que elevaram sua arte a uma escala (quase) divina.

Mais do que visitar a sede da igreja católica e o menor Estado do mundo, foi mesmo o teto da Capela Sistina e as cúpulas da Basílica de São Pedro que me motivaram para ser mais uma entre a multidão que todos os dias cruza os portões do Vaticano. É um mar de gente que caminha com um destino: a Praça de São Pedro – que realmente nos abraça e chama por nós.

Há alertas de carteiristas pelas ruas. Apertamos as mochilas, mas sem surpresas porque já tínhamos sido avisados para esta possibilidade. Apesar de termos comprado com antecedência a entrada para os Museus do Vaticano, lá fomos convencidos a entrar numa visita guiada por um guia cubano, que começou a meter conversa connosco quando quebrávamos a preguiça de uma manhã cinzenta numa chávena de expresso. O argumento que nos convenceu: fugir às filas homéricas para entrar na Basílica de São Pedro, a qual não tínhamos acesso com os nossos bilhetes. E valeu a pena ter pago mais um pouco pela visita guiada.

Primeiro porque ao fim de horas a ver obras de arte, que vão desde à antiguidade clássica, passando pelo Egito, até chegar aos mestres da escola flamenga e renascentista, não íamos, com certeza, ter disposição para estar horas na fila para entrar na basílica. Segundo, é tanta gente a visitar os museus e tantos grupos que quem tenta ir sozinho acaba por ser “esmagado” pela multidão. Terceiro, tivemos a sorte de apanhar um guia brasileiro, carioca, que deu um toque especial à visita. Uma aula de história contada de uma forma simples, bem-humorada e com alguns comentários anticlericais à mistura.

Foram algumas horas a caminhar pelas principais salas dos museus – seria impossível ver tudo num dia, a não ser que tenha preparação física e mental para percorrer sete quilómetros de galerias. Pelo meio, ficamos a saber como a igreja foi conseguindo formar a sua invejável coleção de obras de arte, que teve altos e baixos, progressos e retrocessos, ao sabor das vontades dos Papas, mais ou menos conservadores, das mudanças históricas, conflitos e guerras.

A nossa visita aos museus termina na galeria dos mapas, com um rico teto decorado com a técnica de pintura em três dimensões e de alto relevo. No fim do corredor, descemos as escadas de acesso à Capela Sistina, que com tantas pessoas a descer ao mesmo tempo até parecem mais apertadas do aquilo que são.

Entramos, finalmente, e nem de propósito temos um cantinho para sentar nos bancos que circundam o espaço. A paz e o silêncio que deveríamos encontrar num templo não existem, graças à torrente de pessoas que circula por ali. “Silêncio, shhhhhhhhh!”, ouvimos, bem como a perseguição dos seguranças a quem tenta tirar fotos, mesmo com todos os avisos de que é proibido.

Mas, quando olhamos para cima e perdemos a vista no fresco pintado por Michelangelo, esquecemos a confusão que nos envolve e encontramos uma paz possível num momento de contemplação que prolongamos até que nos doa o pescoço. E, sim, toda a gente deveria ver esta obra prima pelo menos uma vez na vida.

Seguindo para a Basílica de São Pedro, somos esmagados pela grandeza da construção, que, ao longe, não parecia tão gigantesca. Emocionamo-nos, mais uma vez, com a perfeição esculpida na Pietà pelas mãos de um então jovem mestre, que gravaram também para sempre o seu nome na história da arte – Michelangelo começou a esculpir a Pietà aos 23 anos.

Cá fora, as cadeiras desordenadas, com ar de fim de festa, ainda faziam lembrar a audiência geral do Papa Francisco. A azáfama de turistas é contínua. Mais uma selfie, mais um foto ao lado da Guarda Suíça, com o seu traje colorido. Vamos deixando para trás a Basílica de São Pedro e nos desprendendo dos braços enormes da sua praça. Saímos do Vaticano cansados e com fome, mas com um reforçado sentimento de fé na humanidade e em tudo de belo que ela é capaz de construir.

 

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