Memórias do dia 19
Naquela noite, saíram sem destino. Aninharam-se num bar escuro e beberam um copo de vinho. Por entre conversas banais, sobre roupas, unhas e casais, descobriram que a amizade também é isso. Também é dedicar tempo, mesmo depois de um dia de trabalho, mesmo com poucas horas de sono, mesmo num dia de aniversário. Já quase de madrugada, foram embora. Cá fora, a cidade estava vazia e sombria. O nevoeiro escondia os maus intencionados. E pensaram que, naquele instante, todo o mau do mundo lhes podia acontecer. Mas o bater da porta do carro fez evaporar estas ideias soturnas. No dia seguinte, morreu um grande escritor, que adorava gatos e adorava o Porto. O nevoeiro passou, mas a cidade ficou mais triste e mais cinzenta.
Ela ficou um ano mais velha e, ao contrário do habitual, ficou melancólica e nostálgica. A pensar no que é ser jornalista, a pensar que o país navega num mar de sargaço sem fim à vista. A pensar naqueles que pensam nela do outro lado do atlântico. A pensar que às vezes queria ter um barco e navegar sem destino para pensamentos melhores.
A um Jovem Poeta
Procura a rosa.
Onde ela estiver
estás tu fora
de ti. Procura-a em prosa, pode ser
que em prosa ela floresça
ainda, sob tanta
metáfora; pode ser, e que quando
nela te vires te reconheças
como diante de uma infância
inicial não embaciada
de nenhuma palavra
e nenhuma lembrança.
Talvez possas então
escrever sem porquê,
evidência de novo da Razão
e passagem para o que não se vê.
Manuel António Pina, in "Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança"