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Diário de fuga

Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

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Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

O reencontro. Um conto de Natal

23.12.21 | Alice Barcellos

Dedicado a todas as famílias que passam o Natal separadas

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Se eu morresse aqui, ninguém iria dar por isso. Ninguém iria lembrar-se de mim, ou sentir a minha falta. Era como se nunca tivesse existido. Estes pensamentos vinham-lhe à cabeça vezes demais, principalmente quando o longo inverno tomava conta de tudo. A luz do dia era quase inexistente e a neve caía sem piedade dos que, como ele, trabalhavam nestas estradas esquecidas a norte do globo.

Era a vida que ele escolhera desde que saíra do seu país de origem à procura de melhores condições. Ou será que saíra por ter virado as costas à família depois de uma daquelas discussões acesas com o pai e que hoje tinham perdido a importância. Pensava nisso também, mas o caminho parecia cada vez mais sem volta, tal como aquelas noites de invernia, em que a sua única companhia era um copo (ou dois, ou três) de whisky.

O pai morrera há quatro anos e ele não esteve presente no funeral. Foi a machadada final na ligação que ainda poderia ter com a família que lhe restava. Desde então, a irmã nunca mais lhe enviou um postal de Natal, tradição que ia mantendo ao longo dos anos em que estavam separados.

Lembrava-se da irmã e do seu doce olhar de menina, com alguma saudade, mas não tinha coragem de retomar o contacto. Guardava poucas lembranças da infância com ela, visto a diferença de idades ser alguma e ele ter sido sempre tratado com indiferença pelos pais. Mas as lembranças que guardava eram ternas e quentes, como os verões do seu país de origem. Eram os dias de chuva, em que a irmã ia a correr para o jardim, o cheiro a terra molhada, o pão com manteiga que comiam ao lanche e as férias, que pareciam sempre tão longas, passadas na casa dos avós.

Tudo isso ficava fechado ali numa gaveta de um coração congelado, mas saltava ao de cima quando o calendário começava a lembrar a chegada do Natal. Também por esta altura, ele costumava verificar a caixa de correio dia sim, dia não.

*

Se este trânsito não andar, vou desfalecer neste calor, pensava ela, enquanto refrescava-se como podia no interminável engarrafamento que parecia não escolher nem hora nem lugar naquela cidade – maravilhosa só na fachada. O ar condicionado do carro tinha avariado há meses e estava naquela lista de coisas para resolver até ao final do ano e que não iriam ser resolvidas.

Comprou uma garrafa de água gelada vendida por um menino num semáforo e continuou em direção à escola dos filhos. Daqui a pouco começavam as férias de verão e ela ainda não tinha planeado nada para fazer com as crianças. Ficar no apartamento e sofrer com o calor quase infernal do verão na cidade não era uma ideia muito apetecível, mas já não tinha a casa dos avós para se refugiar. Sentia sempre saudades daquele tempo nesta altura do ano. As brincadeiras no jardim, os banhos de chuva, a ceia de Natal repleta de lugares à mesa, as discussões bobas com o irmão e os mimos intermináveis que recebia dos avós.

Aquele tempo, contudo, pertencia a uma fase que tinha terminado. Era uma memória feliz que regressava quando dezembro começava a chegar a meio. A mesa esvaziara-se de pessoas, a família encolhera. Os filhos já não iriam saber como era aquele tempo, mas ela esforçava-se para que tivessem o melhor Natal de sempre, todos os anos.

Às vezes, os meninos perguntavam pelo tio que vivia lá perto do Polo Norte e porque é que ele nunca vinha visitá-los. Ela ficava sem jeito e dizia que o tio tinha sempre muito trabalho nesta época do ano, quando as estradas se enchiam de neve e ele precisava de limpá-las e ajudar as pessoas que ficavam em apuros naqueles caminhos congelados e perigosos. Os miúdos imaginavam o tio como um verdadeiro herói das neves e contentavam-se com a resposta da mãe.

Até aquele ano. Do alto dos seus oito anos, Artur, que adorava inventar histórias, chegou em casa com uma tarefa especial. “Tenho de enviar postais de Natal para os familiares que não podem estar presentes”, disse o menino, com um tom de quem não aceitava desculpas da mãe. O irmão mais novo, Leo de cinco anos, apoiava o mais velho em tudo e nessa questão não foi diferente. Já tinha tudo pronto, só precisava de um endereço e que a mãe fosse com ele aos correios.

Foi, então, depois de um dia daqueles em que a neve se acumulava em cima de tudo como se quisesse apagar certos lugares do mapa que ele abriu a caixa de correio e lá dentro viu uma carta. Não foi preciso saber de quem era: a caligrafia cuidada da irmã escrita no envelope denunciou logo o remetente. Entrou em casa a correr, tirou as botas e o fato de trabalho, e abriu o envelope com todo o cuidado do mundo. Lá dentro não encontrou a letra bonita da irmã, mas sim uma caligrafia infantil de quem ainda estava a aprender a dominar a caneta entre os dedos.

Querido, tio,

Sou o seu sobrinho Artur e vivo no Rio de Janeiro. Tenho oito anos e adoro jogar futebol com os meus amigos, comer picolé de limão na praia e inventar histórias para o meu irmão Leo. Este ano, na escola, as crianças tiveram que enviar um cartão-postal de Natal aos parentes que moram longe e você era a única pessoa para quem eu poderia fazer isso. Então, eu perguntei à mamãe porque é que você nunca vinha passar o Natal com a gente e ela disse que, talvez, se eu convidasse, você viesse.

Deixo aqui o convite.

Feliz Natal do seu sobrinho mais velho, Artur.

P.S.: Eu já sei que o Papai Noel não existe, mas continuo a fingir que acredito pelo meu irmão.

*

O telefone tocou, era tarde, as crianças já dormiam e ela distrai-se com uma novela qualquer na TV.

- Alô.

- Oi, Bia.

Reconheceu logo a voz do irmão e ficou surpreendida. Notou que ele estava emocionado, a segurar o choro, e também ela foi tomada por uma emoção instantânea.

- Recebi o postal do Artur e nem sei muito bem por onde começar. Ficou tanta coisa por dizer. Desculpa se te deixei sozinha. Eu, eu, eu…

Ela interrompeu.

- Deixa pra lá, Leandro. Porque é que você não vem passar o Natal este ano com a gente e conversamos melhor?

Silêncio na linha.

- Leandro, está me ouvindo?

- Sim. Está um pouco em cima da hora, os voos devem estar caros, mas vou ver o que consigo fazer.

- Ok, mas pensa nisso. Vai haver sempre um lugar para ti na nossa mesa.

Quando desembarcou, na véspera de Natal, Leandro sentiu o bafo quente no corpo ainda no aeroporto. Já não sabia o que era sentir calor em dezembro. Trazia na mala poucas mudas de roupa e presentes cuidadosamente embrulhados para os sobrinhos e para a irmã. Quando os viu à sua espera na área das chegadas foi outra vez tomado por aquela emoção guardada há tanto tempo num coração gelado. A irmã acenou e Leo foi a correr em direção às pernas do tio.

Naquela noite, a mesa ganhou mais um lugar e a família passou um Natal como há muito não passava. Foi como se o tempo, a distância e as mágoas que os separavam tivessem desparecido entre conversas, memórias de infância e brincadeiras. Leo continuou a acreditar no Papai Noel e Artur disse que o tio conhecia o bom velhinho, já que morava perto dele. No ano seguinte, quem sabe, seriam os meninos e a irmã a irem passar o Natal no frio.

“Fica feito o convite”, disse Leandro, enquanto trocava um olhar de ternura com o sobrinho Artur.

Texto escrito no âmbito do desafio lançado pela querida Isabel. Vejam aqui mais contos e inspirem-se nestas histórias bonitas. Feliz Natal!

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