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Diário de fuga

Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

Diário de fuga

Na rotina dos sonhos fugimos dos dias

Sociedade secreta da esperança

23.03.20 | Alice Barcellos

A cidade estava silenciosa, como nunca antes havia estado. Amanhecia e o contorno dos arranha-céus começava a desenhar-se contra a luz violeta. Desde que se vivia em isolamento, ninguém começava o dia antes do sol raiar. As pessoas mudaram as rotinas, muitas trabalhavam de casa, outras já nem trabalho tinham. Alguns, poucos, garantiam os serviços mínimos de alimentação e limpeza da cidade – mas estes tinham o dom, como sempre tiveram, de serem quase invisíveis.

Ela saiu. Desceu os onze lances de escada a pé com uma destreza fora do comum. Passou o cartão-chave para abrir a porta do prédio e sentiu o frescor da aurora a afagar-lhe a face pálida. Respirou fundo, cheirava a flores e ao húmus das árvores que se acumulava nas florestas à volta da cidade.

Enfiou o capuz do casaco e seguiu pelas ruas vazias, passos decididos. Andou alguns quarteirões e chegou ao destino. Numa rua sem saída, de antigos armazéns onde antigamente trabalhavam pessoas - antes do mundo ter mudado por completo e do trabalho destas pessoas começar a ser feito por robôs. Sem tirar as luvas, bateu à porta, com uma sequência de toques que parecia ensaiada. Era um código que foi aceite por quem estava do outro lado. Por trás da máscara e do fato de proteção, ela não conseguiu perceber se o porteiro era homem ou mulher, mas isso pouco importava para o momento.

Entrou e a pesada porta de metal fechou-se friamente atrás dela.

- Tira a máscara e abre a boca – disse-lhe o porteiro, fazendo-lhe, logo de seguida, o rastreio do vírus, através de um pequeno dispositivo que analisava as mucosas.

O silêncio que separava as duas pessoas, a rapariga e o porteiro, era tanto que chegava a ser pesado, como se um grande rochedo invisível separasse os dois corpos tensos. Até que a máquina perfurou o rochedo, com o seu “bip bip”, seguido de uma luz verde. Ela estava limpa. Podia seguir em frente.

O porteiro desapareceu na escuridão do armazém, enquanto ela percorria o corredor de acesso à próxima sala. No sentido contrário, viu um rapaz que caminhava com uma leveza no sorriso que há muito ela não via. “Também quero sorrir assim”, pensou a rapariga.

Chegou ao próximo cómodo. Tirou a roupa toda, conservando apenas a roupa interior. Era agora, chegara o momento. Com os dedos frágeis carregou no botão vermelho e fechou os olhos.

Ele chegou por trás dela, silencioso. Suavemente, tirou-lhe o elástico que lhe prendia o cabelo. Longas madeixas negras caíram até ao meio das costas. Segurou-a pelos ombros, virando-a de frente, olharam-se nos olhos por alguns segundos, antes de se fundirem num longo e demorado abraço.

Ela sentiu um arrepio a percorrer-lhe a espinha. Encostou a cabeça entre o seu pescoço e ombro, enquanto fechava os olhos e sentia as suas mãos a percorrer-lhe as costas. Relaxou de uma maneira que nunca havia experienciado e, por momentos, sentiu que tudo ia ficar bem. “Eu poderia morar neste abraço”, imaginou a rapariga. E ali ficaram: dois corpos abraçados, a desfrutar do calor da pele e do conforto do toque. Quem visse tal quadro, seria incapaz de não se emocionar.

Até que um alarme soou. Ele desfez o abraço com a mesma suavidade que o tinha feito. Quando o abraçador se preparava para sair da sala, ela disse:

- Espera! Não sei bem como dizer isso, mas queria agradecer-lhe por este momento. Foi tão bom, não foi? – questionou, envergonhada.

- Nada substitui a candura de um abraço, menina. Foi pena a humanidade ter deixado de perceber isso. Antes, o abraço era uma das mais puras demonstrações de afeto, até que este vírus pôs o mundo de pernas para o ar e as pessoas começaram a ter medo de abraços. É muito triste. Mas nós estamos aqui para prestar este serviço. Fazemos o nosso melhor. Dentro de cada abraço mora sempre a esperança – disse o homem, enquanto abria a porta e desaparecia na escuridão de mais um corredor.

Ela deixou o armazém para trás com a leveza no sorriso de quem sentia que tudo poderia voltar a ser como era antes. Por instantes, lembrou-se de um tempo que parecia tão distante e acreditou que o mundo seria um lugar melhor, se as pessoas voltassem a abraçar-se. “Quem sabe um dia”, pensou a rapariga, enquanto desaparecia entre os prédios desordenados daquela cidade vazia.

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Imagem: Yuan Wang / Unsplash

Texto escrito no âmbito do Desafio dos Pássaros.

Tema da semana: Foi tão bom, não foi. Sigam aqui o blogue dos Pássaros para saberem tudo sobre os desafios de escrita.

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