Uma rosa em Nova Iorque
Nova Iorque no verão pode ser sufocante. As ruas de Manhattan estão apinhadas de gente, erguem-se arranha-céus para onde quer que se aponte o olhar. O cheiro a suor no metro é difícil de aguentar e eu arrasto-me até ao nosso pequeno flat para tentar refrescar-me e fugir da confusão. Mas quando abro a porta, tropeço nesta desarrumação de telas encostadas, cavaletes, restos de tintas, pincéis por lavar, livros empilhados, croquis, esboços... Nunca pensei que fosse tão difícil dividir a existência com um artista.
Nestes dias, sinto saudades de casa e da minha família. Do meu quarto de vestir, das minhas criadas, dos serões a tocar piano e a tentar agradar os convidados, a ser uma boa menina aos olhos dos meus pais. Ah, memórias de um tempo que não volta atrás.
Abri mão de um casamento com um bom partido, de uma vida estável, de um estatuto; tudo em troca de um sonho: ser livre. Mas a única vez que me senti, de facto, livre foi durante aquela travessia do Atlântico, a bordo daquele grande e luxuoso paquete, quando sentia o vento frio a soprar-me na face, quando me apaixonei pela primeira vez.
Deixei tudo para trás e vim para Nova Iorque com este objetivo. Contudo, estou confinada neste apartamento sem ventilação, a lavar pincéis duros e a imaginar como seria a minha vida se não tivesse embarcado naquele navio.
O tempo roubou-me a beleza e o viço da juventude. Jack continua o mesmo conquistador, entregue aos vícios e à boémia nova-iorquina. Todos os meses, encontra uma modelo mais nova e mais bela para pintar nos seus quadros. Mas continua a dizer-me que o seu coração só tem uma única dona: eu.
Entre as aulas de piano que dou e as reuniões com as sufragistas, passo os dias sozinha, à espera que ele chegue à casa para me retribuir um sorriso e um “bom dia”, quem sabe um beijo na testa. Não gosto de ter estes pensamentos, mas, nestes dias sufocantes, imagino o que poderia ter sido da minha vida se ele tivesse ficado no fundo mar, "enterrado" com todas as outras vítimas daquele fatídico acidente. Algumas amigas dizem para deixá-lo de vez. E, só assim, vou conseguir ser, de facto, livre.
Ouço a maçaneta da porta a rodar. Jack chega a casa, traz uma rosa vermelha entre os dentes e, com um sorriso e olhar meigo, pega-me pela mão e, ao mesmo tempo em que me põe a flor no regaço, diz:
- Bom dia, minha querida Rose. Está um belo dia de verão. Vamos dar um passeio ao Central Park?
Caminhamos de mãos dadas pelo parque, vemos as crianças a brincar e os jovens a namoriscar. Nestes momentos, sinto-me feliz e esqueço-me de tudo o resto. Posso ter abdicado de muito, mas, ao menos, escolhi ficar ao lado do homem que amo.
Se sobrevivemos ao maior naufrágio da história, vamos conseguir sobreviver a mais um verão em Nova Iorque.
Foto: Nova Iorque em 1931, construção do Empire State Building / Wikipedia
Texto escrito no âmbito do Desafio dos Pássaros.
Tema da semana: Reescreve o final de um filme. Vejam aqui todos os textos deste desafio de escrita dos blogues do SAPO.